SOMBRAS DO CORAÇÃO
ROTEIRO, DIREÇÃO
& MÚSICA: LUIZ ALBERTO MACHADO
ABERTURA. MÚSICA. TÍTULO.
CRÉDITOS INICIAIS.
CENA 1
A porta fechada do apartamento. Ouve-se o barulho da chave na fechadura,
a porta se abre de repente. Entra Gilvanícila que acende a luz, tranca a porta,
se encaminha para a mesa onde deposita a bolsa, chaves, mantimentos numa sacola
de supermercado. Ela está cansada de um dia estafante, retira o casaco,
senta-se. Descalça a sandália, desabotoa a calça comprida, esbaforida, pega os
mantimentos e vai guardar no compartimento, alimentos na geladeira, remove
lacres e os joga na lixeira. Ela se abana, suspira, remexe a bolsa, retira o
telefone celular, confere deslizando o dedo no aparelho, deposita-o sobre a
mesa. Remexe novamente a bolsa, retira agenda e outros utensílios. Está
ofegante. Segue até o banheiro, porta entreaberta, ouve-se o barulho da água do
chuveiro. O telefone toca, mas ela não ouve. Solfeja uma música ao banho
enquanto estridula o telefone insistentemente.
SOBE O BG. BLACK-OUT. OUVE-SE APENAS O TRINADO DO TELEFONE INSISTENTEMENTE.
CENA 2
Ouve-se a suspensão do barulho do chuveiro e o larilará de Gilvanícila.
GILVANÍCILA
Já vou! Eita, telefone para não me dar sossego...
Já vou!
ABRE-SE A PORTA DO BANHEIRO, SAI GILVANÍCILA VESTIDA COM UMA BLUSA
GRANDE DE ALÇAS, TOALHA ENXUGANDO O CABELO, ATENDE DESAJEITADA O TELEFONE.
GILVANÍLA (atendendo o telefone)
Alô!... Diz mulher... estava no banho. Como é?
(TRANSTORNADA) Quando foi isso? (SENTA-SE, ELA ESTÁ FEIÇÕES GRAVES). Desde
quando?... Sim... Diz isso não, mulher... (IMPACIENTE, ELA SE LEVANTA E FICA
OUVINDO O TELEFONE ANDANDO DE UM LADO A OUTRO). Onde ela está?... sim...
onde?... Onde é que fica?... Vou agora mesmo praí... Como não?... Diz isso não,
mulher... (ELA COMOVIDA, COMEÇA A CHORAR) Por que?... Diz isso não... Faz isso
comigo não... Faz isso não... Como é que pode?... (ELA ENTRA EM DESESPERO). Diz
isso não... E como é que ela está?... Não é possível que ela tenha dito isso...
Não pode ser, faz isso comigo não... (ELA SENTA-SE E COMEÇA A FALAR CHORANDO,
QUASE NÃO SE DÁ PARA ENTENDER SEUS LAMENTOS E O DESABAFO. LEVANTA-SE OUVINDO O
QUE A VOZ DIZ DO OUTRO LADO DO TELEFONE. RONRONA, CHORA. CAMINHA DE UM LADO A
OUTRO, INCONSOLÁVEL, OUVINDO DETALHADAMENTE. SENTA-SE NOVAMENTE, CHORANDO, MÃO
À CABEÇA). Quer dizer que ela não quer que eu vá praí... Faz isso comigo não...
Por que?... Tá, vai me diz, por que ela não quer me ver nem quer que eu vá
praí, diz... (ELA MAIS SE DESESPERA). Não pode ser... Vou me arrumar e vou praí
agorinha, queira ou não... Por que ela não quer me ver, diga?... Por que?...
(ELA SE DIRIJE PRO QUARTO, DEITA-SE NA CAMA, AOS PRANTOS, OUVINDO O RELATO DA
VOZ QUE FALA AO TELEFONE). Diz isso não... Tá. E os médicos disseram o quê?...
(ELA SE AGARRA AO TRAVESSEIRO, ESCONDE A CABEÇA OUVINDO AO TELEFONE).
SOBE O BG. BLACKOUT.
CENA 3
(GILVANÍCILA ABRE OS OLHOS, ESTÁ DEITADA AO TRAVESSEIRO, OLHOS INCHADOS
DE CHORAR. LEVANTA-SE LENTAMENTE, SENTA-SE AO LADO DA CAMA, PENSATIVA).
GILVANÍCILA
Por que ela não quer me ver? Não pode ser... Só me
faltava essa...
(ELA LEVANTA-SE RESMUNGANDO, FALANDO SOZINHA, PEGA UM COPO, VAI ATÉ A
GELADEIRA, RETIRA GELO, COLOCA NO COPO, PEGA UMA GARRAFA DE UÍSQUE, COLOCA UMA
DOSE, BEBE, ACENDE UM CIGARRO E, COM A FUMAÇA DA BAFORADA, DESABAFA SOZINHA).
GILVANÍCILA
Ela nunca gostou mesmo de mim.
Sempre notei isso, mas me negar de vê-la hospitalizada, deixar claro que não
quer a minha presença ali, a sua idade, pode ser a última vez, a minha
oportunidade de vê-la e saber dela por que ela nunca gostou de mim, por que
sempre me tratou com desprezo, sempre botou gosto ruim nas minhas coisas e
vida, me encaminhou logo cedo pros meus avós, nunca quis cuidar de mim, eu
cresci e vivi minha vida toda longe dela, nunca quis saber de mim, nunca gostou
do que fiz ou faço, sempre me condenou, sempre disse não para mim, nunca um
afeto, um carinho, não sei o que é carinho de mãe, por que, por que, por que? Por
que, mãe?
(SENTA-SE À MESA, COLOCA AS MÃOS À CABEÇA, RESMUNGANDO. PEGA UM COPO,
DIRIGE O OLHAR PERDIDO PARA ALGUM LUGAR E RUMINA ENQUANTO BEBE, ACENDE UM
CIGARRO, NERVOSA).
GILVANÍCILA
Preciso descobrir. Pensa, mulher! (BEBE, TRAGA E
BAFORA O CIGARRO. O TELEFONE TOCA, ATENDE DESAJEITADA). Ôi, mulher, como ela
está?... Imagino... Eu vou praí... Por que não?... Não faz isso comigo, eu
preciso da minha mãe, preciso estar perto dela, preciso sentir pela primeira
ela perto de mim, não lembro quando ela me afagou e a afaguei, nunca tive
carinho de mãe, preciso saber dela por que ela nunca gostou de mim... Eu sei
que ela não gostava de mim e morria de ciúmes do meu pai comigo, eu sei... Se
não era ciúmes do meu pai comigo, ele era tão carinhoso, tão atento a tudo que
eu fazia, só pode ser isso... Tá, se não era ciúmes do meu pai comigo, o que
era então?... Ah, você é amiga dela, conviveu com ela todo o tempo do mundo que
eu nunca pude viver, ela nunca quis estar comigo, me jogou na casa dos meus
avós e me abandonou para sempre... Eu sentia que ela não gostava de mim e toda
vez que eu a visitava ela era indiferente, fria, distante, nunca se aproximou
de mim, nunca me deu um beijo, nunca procurou por mim, bastava eu chegar e ela
já dizia que era hora de ir e eu queria tanto conversar com ela, saber dela,
ouvi-la contar da sua vida, dividir com ela a minha vida... Por que não?...
Então você sabe a verdadeira razão... Faz isso comigo não, vai, me conta,
preciso saber por que minha mãe nunca gostou de mim... Ela me odiava, parece...
mas por que? Ah, tá... me liga, por favor... não me deixa aqui aflita sem saber
de nada, senão eu vou praí!... Tá bom, me deixa a par, por favor, só você pode
saber da minha aflição, não me abandona, me deixa a par de tudo... Tá bom,
aguardo sua ligação com os resultados...
SOBE O BG. GILVANÍLIA BEBE, ACENDE OUTRO CIGARRO, ESTÁ NERVOSA.
LEVANTA-SE FALANDO SOZINHA, VAI DE UM LADO A OUTRA DA SALA, ESTÁ INQUIETA.
GILVANÍLA
Nunca tive amor de mãe, não sei o que é isso. Meu
pai, enquanto viveu, supria essa falta, sempre carinhoso, sempre atencioso, meu
pai não existia, era coisa de outro mundo. Ele se foi faz tanto tempo, mas
ainda o sinto aqui, ao meu lado... ah, meu pai, que falta você me faz! Esteve
sempre ao meu lado, comigo o tempo inteiro, não me deixava perdida, tão vulnerável,
como eu preciso do abraço dele agora... Meus avós, coitados, sempre me deram
apoio, vovó foi uma mãe exemplar, substituiu a minha mãe à altura, não posso
reclamar. Mas, poxa, carinho de mãe é importante e ela viva todo esse tempo me
rejeitando, por quê? Por que será, meu Deus, que minha mãe não quer me ver nem
pintada a ouro, nunca quis, nem mesmo agora em que ela está nesse momento de
difícil, entre a vida e a morte. Não quer me ver, não quer que eu vá pro
hospital, não quer sequer saber de mim, por que será, meu Deus?... (O TELEFONE
TOCA, ELA ATENDE). Sim, vai, me dá notícias dela... Sim... Faz isso comigo não,
vai... E os médicos disseram o quê?... Eu vou praí... eu preciso, mulher,
preciso estar perto da minha mãe... faz isso comigo não... Tá bom, ficarei aqui
aguardando as notícias, me deixa a par, por favor... eu só queria saber porque
ela me odeia tanto... Eu sei que não é hora para isso, mas são tantas
perguntas, nenhuma resposta, você mesma que conviveu com ela esse tempo todo
conhece ela melhor que eu... sim, eu sei da amizade desde meninas entre vocês,
mas eu também tenho o direito de saber a verdade, não acha?... Veja a minha
situação: meu pai que era meu único porto seguro se foi há muito tempo; meus
avós, coitados, sempre atenciosos, não tenho do que reclamar, meu amor foi
outro muito bom comigo, vovó foi à toda prova, não tenho do que reclamar, você
acha que procurar saber porque a mãe odeia uma filha não é uma razão suficiente
para que ela tenha sofrimentos que precisam ser questionados para que
compreenda porque em toda a sua vida foi tratada com desprezo?... Tá bom, eu
sei que este não é o momento certo, precisamos mesmo torcer pelas melhoras
dela, mas você mesma me disse que a situação dela é grave e que os médicos
disseram tratar-se de um quadro irreversível... tenho medo de nunca mais poder
ver minha mãe e esclarecer tudo... Tá certo, eu espero... ficarei aqui, mesmo
sob protestos, mesmo revoltada com tudo isso, estarei aqui, me deixa a par, por
favor... tá bom...
SOBE O BG. ELA DESLIGA O APARELHO E O COLOCA SOBRE A MESA. ESTÁ
PENSATIVA. ENCHE O COPO DE BEBIDA, APAGA O CIGARRO, ACENDE OUTRO. BAFORA,
LEVANTA-SE, AJEITANDO AS BITUCAS NO CINZEIRO. FALA SOZINHA. SAI, JOGA AS CINZAS
DO CINZEIRO NA LIXEIRA, VOLTA PRA MESA, SENTA-SE.
GILVANÍCILA
Meu pai é a melhor lembrança da minha vida. Ele
sempre realizou todos os meus sonhos, sorridente, não lembro nunca de ver meu
pai triste, mesmo no velório ele morreu com um sorriso nos lábios. Com todo
mundo era sorridente, acolhedor, até com traste do meu... Peraí... Basta eu me
lembrar daquele tio, chega me dá uma coisa ruim... eu gostava tanto dele, mas o
que ele fez foi imperdoável... sofri muitos anos por causa dele, ainda hoje
sofro quando me lembro... foram preciso décadas de pesadelos... por que eu me
lembrei desse traste agora? Não quero me lembrar, já tinha esquecido aquela
ruindade... ah, não... (LEVANTA-SE INQUIETA, VAI DE UM LADO A OUTRO)... Eu era
tão jovem, ele não podia ter feito aquilo comigo, é passado, já foi. Por causa
dele, meu pai morreu de infarto. Dois crimes que ele cometeu e desgraçou tudo:
o que me fez na minha inocência adolescente, razão pela qual meu pai foi
tragado por fulminante morte. Desgraçado!... Não posso perdoá-lo... o que ele
me fez não fui curada, mas o ato dele matou meu pai e isso é imperdoável...
como eu queria agora me vingar dele, vê-lo face a face para cuspir-lhe a cara e
dizer tudo que tenho de raiva guardada contra ele... Parece mais que o ódio da
minha mãe tem a ver com a raiva que tenho daquele desgraçado... por que ela
nunca me apoiou contra ele? Aliás, ela nunca me apoiou em nada, não seria por
isso que passaria a me apoiar. O único ato de apoio dela foi enxotá-lo lá de
casa depois da morte do meu pai. Afora isso, não lembro de nenhum sorriso,
nenhum afeto, nada dela para minha banda, sempre olhares de soslaio, muxoxos de
desprezo, só queria me ver pelas costas... ah, não... (PEGA O COPO, BEBE MAIS
UM POUCO, APAGA O CIGARRO, ACENDE OUTRO, BAFORA E PENSA CONSIGO, FALANDO
SOZINHA). Peraí, aquela pasta com a papelada de papai que ela me deu... onde
está? Preciso acha-la agora... (SAI REMEXENDO E PROCURANDO PELA CASA). Onde eu
guardei, meu Deus, preciso dela agorinha, pode ter que tenha alguma pista...
Não está... Onde guardei?... Ah, tá aqui... (PEGA A PASTA EMPOEIRADA E COLOCA
SOBRE A MESA, ABRE-A E PASSA A PAPELADA). Ah, os cadernos com a caligrafia do
meu pai e seus poeminhas para mim... só dei atenção a isso, preciso ver o resto
da papelada (PASSANDO DOCUMENTO A DOCUMENTO, UMA FOLHA CAI AO CHÃO). O que é
isso?... Documento de exame médico de meu pai... como é? Não pode ser... Meu
pai era estéril? E de quem eu sou filha afinal... não pode ser... Se ele não
era o meu pai biológico, quem seria?... Não pode ser, ah, meu Deus, diga que
não, por favor... (PEGA O TELEFONE, LIGA). Atende, desgraçada! (DIGITA
NOVAMENTE). Atende, por favor, atende! (DEIXA O TELEFONE PARA LÁ E REMEXE NA
PAPELADA). Minha certidão de nascimento... a certidão de casamento dos meus
pais... a certidão de óbito do meu pai... (REPASSA TODOS OS DOCUMENTOS E
PAPELADA). Não pode ser, tomara que eu esteja enganada... (PEGA O TELEFONE
NOVAMENTE, DISCA E NÃO ATENDE). Droga! Por que ela não me atende?... Ela sabe,
sabe de tudo... Precisa me esclarecer... (O TELEFONE TOCA). Graças! Ôi, mulher,
liguei que só pra você e não atendeu... sim, como ela está? Diz isso não...
Ainda bem, mas continuam dizendo que é irreversível?... Meu Deus, o que será de
mim... Tá, estou calma, me controlando, aqui esperando as suas notícias. Tomara
ela saia dessa, preciso que ela saia dessa, tenho muito que conversar com
ela... Descobri umas coisas agora, ah, não, não desligue, peraí, quero
perguntar uma coisa... peraí, deixa eu perguntar uma coisa: descobri agora que
meu pai era estéril, então você sabe quem é o meu pai de verdade? Não
desligue... Eu sei que não é hora para essas coisas, mas eu tenho o direito de
saber!... Então, me diga só uma coisa, só uma coisinha: eu não sou filha do
traste do meu tio, né?... Por que você não pode responder, é só dizer sim ou
não... Pelo menos para me apaziguar... Faz isso comigo, não. Responde vai... Eu
fico aqui esperando as noticias da minha mãe, não saio daqui, mas me responde:
eu não sou filha daquele que me estuprou não, né?
SOBE O BG. GILVANÍCILA JOGA O TELEFONE, PÕE A CABEÇA SOBRE AS MÃOS, O
MUNDO GIRA. BLACKOUT.
CENA 4
BG MATINAL. JÁ É DIA NA JANELA DO QUARTO. GILVANÍCILA DORME ENROLADA NO
COBERTOR, CAMA DESARRUMADA COM LIVROS, ANOTAÇÕES, UTENSÍLIOS. ELA SE ACORDA
ASSUSTADA COM O TOQUE DO CELULAR.
GILVANÍCILA (ATENDENDO TELEFONE ASSUSTADA)
Sim, como ela está? (LEVANTA-SE E SE DIRIGE PARA A
SALA. A MESA DESARRUMADA, PAPÉIS, O LITRO DO UÍSQUE DEITADO VAZIO, O CINZEIRO
ESBORRANDO DE BITUCAS. SENTA-SE À MESA CHOROSA, CABEÇA APOIADA NA MÃO ENQUANTO
OUVE A FALA NO APARELHO, DESOLADA). Sim... sim... vá direto ao assunto, como
ela está depois de passar essa noite toda... os médicos disseram o quê?... sim,
não enrole, os médicos disseram o quê?... sim... e tem jeito?... Como ela está
agora?... Aonde?... Faz isso comigo não... (CHORANDO). Coitado dos meus avós,
agora tenho que cuidar dos vivos... Eles estão muito velhinhos, tenho que dar a
notícia a eles, não sei como vai ser... Tá bom... acordei agora, vou tomar um
banho... posso ir praí agora?... Eu tinha muito que conversar com ela, mas
agora é tarde... pelo menos poderei estar perto dela no velório, pelo menos
isso... Eu já sei de tudo, não quero mais saber de culpados nem de inocentes,
nem vítimas, nem carrascos... quero viver a minha vida e cuidar dos meus avós
que logo logo chegará a hora deles... preciso desfrutar do que ainda me resta
da minha família... Obrigado, chego já por aí. Tchausis.
SOBE O BG. GILVANÍCILA DEITA A CABEÇA SOBRE A MESA, AO DESALENTO.
CREDITOS FINAIS.
FIM.
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