O NÁUFRAGO DO MAFALDA
Ou Precipitação
Ou Luiz, o paranoico.
Texto de
Fenelon Barreto em 2 atos, encenado no dia 7 de setembro de 1930, em Palmares –
PE. Drama da atualidade em dois atos breves, cada cena uma situação, levado à
representação com concurso de rapazes e distintas senhorinhas do meio social.
PERSONAGENS
- ELENCO
Luiz, 23
anos – Odyllo Ferreira
Alzira,
17 anos (esposa de Luiz) – Elmazia S. Couto
D.
Áurea, 42 anos (mãe de Luiz) – Maria do Carmo
Amelia,
19 anos – Maria Francisca
Dr.
Fernando, 37 anos, médico – José de Castro
Adolpho,
24 anos (um quidam) – Manoel Ferreira
Edmundo,
45 anos – Arthur Almeida.
PRIMEIRO
ATO
CENA I
Alzira,
esposa de Luiz, e d. Áurea, estão sentadas. A última, esposa de Edmundo, ouve a
leitura do romance que Alzira lê embevecida. De súbito, um copo que estava a
mesinha cai ao solo.
ÁUREA
(com espanto) – Estás vendo, Alzira? Não sei o que está para acontecer!
ALZIRA
(sobressaltada) – É verdade, d. Áurea. Já ontem me impressionou tanto a luz do
candeeiro ter se apagado de repente! Não se lembra?
ÁUREA
(levantando-se) – Não só isso. Hoje quando me levantei, uma borboleta preta
veio pousar em meu vestido. Penso que nestes dias, nesta casa, acontecerá
qualquer coisa.
ALZIRA
(tomada) – Deus nos livre! Luiz e seu Edmundo viajando a bordo! Deus nos livre!
ÁUREA –
Já uma vez começaram a aparecer estes avisos e sabe que sucedeu? Morreu
subitamente a minha irmã no abalroamento do trem da Paraiba e eu quase me ia
também com uma febre de mau caráter.
ALZIRA –
Deus nos livre! Não consigo ficar sem me alarmar com o marido nessa viagem
parece demorada.
(ALGUÉM
BATE A PORTA, CARTEIRO COM TELEGRAMA. AMBAS SE LEVANTAM ASSUSTADAS, ASSINAM A
RECEPÇÃO, ÁVIDAS PARA SABER O CONTEÚDO. ALZIRA LÊ O CONTEÚDO: NAUFRÁGIO NO
PRINCESA MAFALDA!).
ÁUREA –
Como? No Princesa Mafalda, aquele paquete italiano, não é? Ah! É um dos
melhores transatlânticos. O que é que diz aí?
ALZIRA –
Apenas o naufrágio.
ÁUREA –
Quem enviou?
ALZIRA –
Ah, não, não entendeu?
ÁUREA –
O quê?
ALZIRA –
Tenho muito medo. Esses avisos. Será que aconteceu alguma coisa com eles?
ÁUREA –
Eles quem, mulher?
ALZIRA –
A senhora está broca?
ÁUREA –
Por quê?
ALZIRA –
Onde estão seu marido e filho?
ÁUREA –
Minha nossa, valha-me. (SENTA-SE DESOLADA, COM FALTA DE AR. ALZIRA TENTA
SOCORRER COM UM COPO DE ÁGUA E AÇUCAR).
CENA 2
(OUVE-SE
A CHEGADA DO JORNALEIRO GRITANDO: JORNAL! ALZIRA CORRE PARA PEGAR. ABRE-O ÀS
PRESSAS E LER A MANCHETE E FICA TRANSTORNADA).
ALZIRA
(num desespero súbito) – D. Áurea, que desgraça, d. Áurea! O Mafalda soçobrou!
Ontem à noite! Luiz. E seu Edmundo?
ÁUREA –
Como?... Como foi, Alzira?... Mostre (lê o jornal). Meu Deus! Que infelicidade!
O meu esposo e o meu filho!
ALZIRA
(desalentada) – Jesús! Que há de ser de mim! Tende piedade de mim, meu Deus!
CENA 4
(ENTRA
FERNANDO)
FERNANDO
– Bom dia! Que é isso aqui? Alguma novidade?
ALZIRA
(soluçante) – Ai, dr. Fernando! Já sabe o que aconteceu? O Princesa Mafalda
naufragou! Luiz e seu Edmundo vinham nesse paquete!
ÁUREA
(soerguendo-se) – Tudo me acontece, dr. Fernando. Até isso! Meu filho e meu
esposo morreram!
FERNANDO
(pegando um papel no bolso) – Deixem disso, todos os passageiros foram salvos!
E agora mesmo recebi um telegrama de Luiz dizendo que estava em paz.
ALZIRA –
Ai, dr. Fernando, o senhor não poderia mostrar-me esse telegrama?
ÁUREA –
É verdade isso, doutor?
ALZIRA –
Ó, doutor, mostre esse telegrama. Nós aqui temos estão tão aflitas que o senhor
não imagina.
FERMNANDO
– O telegrama está em casa. O Luiz me comunicou que chega amanhã. Por isso que
estou aqui para avisá-las e sossegá-las.
ALZIRA -
Dr. Fernando, não deixe a gente ficar aqui tão sozinhas sem saber de nada. Se
souber alguma mais venha dizer, por favor!
FERNANDO
– Terei o maior prazer de vir aqui trazer qualquer notícia.
ÁUREA –
Esse choque veio acabar comigo.
FERNANDO
– Mas estejam sossegadas. Estejam tranquilas que nada aconteceu. Vou à rua e se
aparecer qualquer novidade estarei aqui para contar pra vocês. Dêem-me licença.
(SAI).
CENA 5
(ALZITA
SENTADA COM ÁUREA)
ALZIRA –
No dia de hoje morreu meu pai. Foi um dia angustioso para mim! Só me passa pela
cabeça a ausência de Luiz, se algo acontecer a ele, será a maior desgraça do
mundo.
ÁUREA –
Por isso que eu nunca quis viajar de navio. Deus me defenda! Veja aí se chegou
alguma embarcação de socorro.
ALZIRA
(Consultando o jornal) – É esperado hoje o Rossetti. Pode ser que esse vapor
nos traga alguma notícia, ou mesmo que eles venham nesse navio.
ÁUREA –
Pode ser. Pode ser. Mas vá me diz o coração que eles estão mortos. Meu Deus! E
quanta gente está nessa mesma aflição, hem?
CENA 6
(ALGUM
TEMPO DEPOIS)
LUIZ
(com aspecto clemente) – Alzira! Minha mãe!
(ALZIRA
E ÁUREA RADIANTES) – Luiz! Luiz! (LUIZ CHORA ENTRE AS MULHERES)
ÁUREA –
Luiz, meu filho, que é de Edmundo? Morreu?
LUIZ
(soluçando) – Não chore, minha mãe, sim pai morreu... (ALZIRA E ÁUREA CHOROSAS)
Vocês não chorem! Não chorem!
ÁUREA –
Meu querido Edmundo, coitado!
LUIZ – É
o espetáculo mais pungente da vida, assisti a tudo ontem! Ah, que desgraça! Os
meus olhos viram, que horror! Afogamos e cantávamos com os companheiros! Tudo
estava alegre naquele momento, quando se anunciou que a hélice do navio se
partira! Não sei como foi! Só sei dizer que horas depois, ninguém esperava
mais, as águas invadiram assustadoramente o interior do navio, tarde demais
para o recurso de salvação! Alzira, minha filha, que horror naquele momento!
Que quadro horrível, que deplorável! Por toda parte gritos, lamurias, gemidos,
desespero! Por toda parte arrancos de peitos compungidos, quantos perderam a
esperança, era a morte gargalhando sinistra naquele instante entre suas vítimas
pregadas de surpresa! Era nossos destinos! Todos tínhamos que socorrer, aquela
hora sinistra. A noite era horrenda! E quando o navio lembrava um asilo de
alucinados, na confusão dos desgraçados eu e outros nos atiramos ao mar! Meu
Deus! Que cena angustiosa aquela, pungente! Homens, mulheres, crianças, todos
devorados pelos tubarões! E eu vi, mamãe, eu vi um tubarão devorar um homem que
tenho a certeza de ter visto meu pai. (ÁUREA E ALZIRA SOLUÇAM). Alzira! Venha
cá! Como tem vivido você? Quase dessa vez perdia o seu Luiz.
ÁUREA –
Meu filho. Faz três dias que nós temos tido visões de morte aqui em casa.
Realizou-se tudo. Perdi o meu Edmundo. Vou embora para onde está o meu irmão.
ALZIRA –
A senhora não vá embora!
LUIZ –
Mamãe, não deve ir embora pra casa de tio joca, nem de ninguém. Não deve ir,
não. Ficará aqui mesmo com a gente. Mamãe! Eu ando muito doente da cabeça, pois
tive um abalo terrível. Estou louco de ontem, a noite toda. O doutor Fernando não
apareceu: o médico de bordo achou que eu devia repousar. Eu vou conversar com o
doutor Fernando, Alzira, você trata do almoço que ainda hoje não comi nada.
ALZIRA
(levantando-se) – Luiz, você demore pouco.
ÁUREA –
Serei resignada. Chega de tudo, não perdi o meu filho. A minha dor tem esta
resignação.
ALZIRA –
Pobre de seu Edmundo. E Luiz? A senhora já notou como ele está diferente? Eu
penso que Luiz está muito chocado.
ÁUREA –
Não é para menos, Alzira. Eu vou tratar do almoço de Luiz que ele não tarda a chegar.
CENA 7
ADOLFO,
UM AGENTE DA CAIXA FORTE – Dão licença?
ÁUREA –
Pois não!
ADOLFO –
A senhora não deseja inscrever-se na Caixa Forte?
ÁREA
(Depois de muita insistência) – Que vantagens oferece a Caixa Forte?
ALZURA –
D. Áurea, vamos tratar do almoço de Luiz.
ADOLFO –
A Caixa Forte tem sorteios mensais. É muito bom ser sócio!
ÁUREA –
Hoje mesmo, não.
ALZIRA –
O senhor venha outra vez.
ADOLFO –
Pois bem: nestes dias virei expor as vantagens da Caixa Forte! É muita honra
para mim tê-las como sócias.
CENA 8
LUIZ
(entrando e encontrando Adolfo na entrada que logo sai) – Alzira, quem é este
homem?
ALZIRA –
É um representante da Caixa Forte.
LUIZ –
Pois... Pois então, não consinto que ele torne a entrar aqui.
ALZIRA –
Está, porventura, desconfiando de mim?
LUIZ –
Sei lá de nada! Me deixa, me deixa. Já cuidaste do meu almoço? Que fez então
todo esse tempo? Hein? Prestando atenção àquele patife não foi? Hem, Alzira?
Vamos, vai cuidar de meu almoço! (BATENDO FORTE NA MESA) Vai! Vai! Antes quye
eu me dane! Tu sabes que eu vou morrer, estás preparando o terreno!
ALZIRA –
Luiz, que estás dizendo?
LUIZ
(furioso) – Cala-te, senão eu te esbandalho! Quantas vezes a mulher que nóps
suponhamos um anjo não passa de uma aventureira?
PANO
SEGUNDO
ATO
CENA 1
(SENTADOS
LUIZ E O FERNANDO, O PRIMEIRO COM O PESCOÇO ENVOLVIDO, COM ASPECTO DE DOENTE)
LUIZ –
Seja-me positivo, doutor. Os sintomas desta moléstia me parecem graves, penso
que vou morrer. Ainda ontem senti as mesmas dores agudas no coração, o meu
coração está cansado, sinto profunda ansiedade, cruéis sufocações, vivo
inquieto, agitado! Tem momento que chego cair em desmaio. Tenho muitas vezes o
rosto arroxeado e sinto contrações terríveis.
FERNANDO
– Não se impressione com isso. Observe o regime e nada mais. Evite as fadigas e
vá tomando aqueles remédios, que nesses dias estará restabelecido. Você não tem
afecção alguma no coração. Não se esqueça de tomar muito leite que lhe fará um
grande bem, ouviu? Deixe ver uma coisa: (AUSCULTAO-O. SENTE O RUIDO E FRANZE O
SOBROLHO). É o que estou dizendo. Nada de gravidade. Vá seguinte os meus
conselhos. (DESPEDE-SE E SAI).
CENA 2
ÁUREA –
Então que disse o médico sobre teu incomodo?
LUIZ – O
dr. Fernando está animado, só eu é que não estou. Disse que não há nada a
recear. Pode ser. Mas eu ainda duvido. Deixou ai esses remédios.
ÁUREA
(REVÊ OS REMÉDIOS) – é, meu filho, o doutor conhece o incomodo. O que você tem
mais é uma grande alteração nervosa.
LUIZ –
Pois não hei-de estar nervoso, mamãe? Se há poucos os motivos que eu tenho para
estar nervoso?
ÁUREA –
Mas por causa de que, menino? Devido ao dinheiro perdido no naufrágio? Ora.
Vão-se os anéis, ficam os dedos.
LUIZ –
Aquela desgraça me impressionou! A noite daquele sinistro nunca consegui
esquecer. Nunca mais hei-de viajar no mar, Deus me livre! Como que ainda ouço o
clamor daquele povo no desespero de perder as vidas! Toda noite sonho com
aquele cruel espetáculo! O mar revolto, o paquete imergindo e o gemido das
ondas!
ÁUREA –
Esquece isso, vamos! nada dessas lembranças!
LUIZ – E
o meu pai, mamãe? Ah! Eu vi o tubarão devorá-lo, eu vi como ele morreu num dado
momento angustioso, coitado, antes fosse eu que tivesse morrido porque não
estava sofrendo assim! Mamãe, me dê ai esse remédio.
ÁUREA
(OBEDECE).
LUIZ –
Estou com a ansiedade do peito. Penso que estou com uma inflamação muito grave
no coração! Ah! Meu Deus: morrer tão moço! Quando penso em morrer! Sabe de uma
coisa, mamãe? Eu vou receitar-me com outro médico, não muito no doutor Fernando
(TIRA O CHAPÉU E VEXA-SE).
CENA3
(ÁUREA
QUE VOLTOU DA PORTA, ESTÁ SENTADA, MEDITANDO DIANTE DE UM GAMÃO)
ALZIRA –
Que é de Luiz?
ÁUREA –
Foi a rua receitar-se.
ALZUIRA
– E o doutor Fernando?
ÁUREA –
Diz que o doutor Fernando não lhe inspira nenhuma confiança.
ALZIRA –
Aquele incomode Luiz é deveras impressionante. Mas ele ficará restabelecido.
ÁUREA –
Só tenho medo é que ele não enlouqueça. Não há dívida que ele está com uma
lesão cardíaca.
CENA 4
CELESTE
(MUITO EXPLICADA) – Bons dias.
ALZIRA
& ÁUREA – Oh, Celeste!
ALZIRA –
Está passeando?
CELESTE
– Absolutamente. Como está o Luiz?
ALZIRA –
Sempre doente, minha filha.
ÁUREA –
Com aquele nervosismo dele. Não tem melhorado nada.
CELESTE
– E o doutor Fernando Valladares diz o quê a respeito das manifestações
sintomáticas?
ALZIRA –
Ele diz que ele ficará restabelecido.
ÁUREA –
Mas o que salva o doente é a fé. Ele não tem mais confiança no médico.
CELESTE
– Vou agora à casa do médico fazer-lhe uma consulta.
ALZIRA –
Sim, muito bem. Dona Áurea pode ir agora com Celeste com o doutor?
CELESTE
– Ele mora nesta rua, não é?
ALZIRA –
Aqui perto.
ÁUREA –
Pois eu vou com Celeste. Com pouco mais estou de volta.
SAEM AS
DUAS.
CENA 5
ADOLFO
ENTRA COM SEU PECULIAR PEDANTISMO – Bom dia! Bom dia! Então está resolvido a
inscrever-se na Caixa Forte?
ALZIRA
(LEVANTANDO-=SE SOBRESSALTADA) – Não senhor. Tenho um grande horropr a toda
espécie de jogo.
ADOLFO –
Mas compreenda a senhora que isto não é jogo, é antes um divertimento.
ALZIRA –
Não senhor. Não gosto de divertimento. E peço ao senhor a fineza de não vir aqui
oferecer-me mais isso.
ADOLFO –
Minha senhora!...
ALZIRA –
Sou uma senhora casada e o meu marido é bastante zeloso por mim. Não quero
saber de jogo.
ADOLFO –
Oh, minha gentil senhora, isso é não conhecer o que é o vantajoso!... Poios
aqui mesmo nesta rua tem um cavalheiro, o senhor Vicente, ora, ele foi premiado
com 4 milhões!...
CENA 6
LUIZ
(POSSESSO) – O que é isso aqui? O senhor deseja alguma coisa, hem, seu
atrevido? Porque o senhor ainda entra nessa casa, hem? Que explicação me dá
sobre o seu atrevimento, sobre a sua afoiteza?
ADOLFO –
Afoiteza, como? Eu sou propagandista da Caixa Forte!
LUIZ –
Por aqui, cachorro! Por aqui senão neste mesmo instante eu faço a minha
desgraça e eu não quero perder a cabeça contigo (EMPURRA-O) rua, rua rua!...
ADOLFO
SAI.
CENA 7
LUIZ – E
a senhora, hem? E a senhora? Porventura não se recorda mais do que lhe disse,
hem? Que procedimento miserável é o seu:
ALZIRA –
Luiz! Luiz! Acalme!
LUIZ –
Cale-se! Acalmar, como? Eu devia agora mesmo quebra-la de murros e tabefes,
cortar-lhe o cabelo atirá-la à rua como um cão... por que, por que... porque a
senhora só merece que se lhe faça isso!...
(ROSNANDO) Miserável! Miserável! Onde é que eu estou? Onde é que eu
estou?
ALZIRA –
Luiz, pelo amor de Deus, não sacrifique a minha felicidade.
LUIZ –
Cale-se, já disse! Cale-se!... Eu sei sobejamente com quem convivo! Eu conheço
os dedos das minhas mãos.
ALZIRA
(RESOLUTA) – Prove que algum dia na minha vida eu cometesse uma falta. Você
prova... tem que provar! Se não provar...
LUIZ –
Bandida!... Com que arrojo a senhora ousa replicar as minhas acusações? Quem é
a senhora e quem foi a senhora no passado?
ALZIRA –
Fui sempre uma moça honesta, fui, sempre fui, podem arrancar-me a vida mas
nunca escurecer esta verdade, nem afastar-me este orgulho!
LUIZ –
Sempre foste, uma infame! Uma infame! Nunca foste mais do que uma infame!
ALZIRA –
Luiz, ainda lhe imploro compaixão! Tem pena de mim, Luiz!...
LUIZ – A
sua saída é chamar dengosamente pelo meu nome, com essa falinha maneirosa, com
esses modinhos falsos que tenho repugnância. Sim, muita repugnância, muito
asco, muito nojo!... Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse conter
agora o meu grande desejo de vomitar!... E a sociedade lá fora a mangar de mim!
A sociedade! Deixa estar! Deixa estar que talvez hoje mesmo o diabo se solte, o
diabo tem sete cornos e sete muchochos, sabes? Cuida da tua vida, macaquinha!
Onde está a minha mãe?... É sempre assim! Quando ela sai, a senhora aproveita a
oportunidade para os seus requebros com aquele safadinho, nbão sabendo que mais
tarde ou mais cedo, isso irá custar caro, caro, muito caro, porque eu estou
fazendo tudo para entrar numa precipitação!...
ALZIRA –
O senhor é deveras injusto comigo, eu nunca o injuriei para ser tão injuriada,
seja mais justo, retire as palavres que me disse.
LUIZ – O
quê? Então eu sou injusto? Então eu é que não presto? Não é? Hem, macaquinha?
(QUER PEGÁ-LA). Espere aí!...
ALZIRA -
(TIRANDO UM PUNHAL NA GAVETA) Mato-o, miserável! E depois me matarei! A vida
para mim já não vale nada! As injurias que o senhor me atirou são nodoas vivas
que nunca se apagarão!
LUIZ
(IMÓVEL) – Criminosa! Queres me matar, não é?
ALZURA –
Sou pura como nenhuma! E se o senhor espancar-me eu o matarei! Experimente!
CENA 8
ÁUREA –
Que é isso? Vocês estão brigando?
LUIZ –
Essa mulher quer me matar, minha mãe!
AUREA –
Mas por que? Que é isso? Por que isso?
ALZIRA
COMEÇA A CHORAR.
ÁUREA –
Que é isso, minha gente? Que coisa mais feia!
LUIZ –
Eu sou um homem, minha mãe! Essa mulher não vale nada e a senhora também tem
culpa porque deixa que ela fique sozinha uando sabe que ela vive noite e dia
premeditando o adultério!
ÁUREA –
Meu filho, não diga isso de Alzira que é uma pobre criatura!
LUIZ –
Que nada, minha mãe! A senhora também vem defende-la, a essa mulher sem
sentimento, sem dignidade alguma?
AUREA –
Eu conheço Alzira e tu também a conheces. Coitadinha. Ela te ama, meu filho.
Ela tem sofrido tanto por tua causa. Tu estás doente!
LUIZ – É
isso mesmo!... Tem razão! A senhora e ela tem toda razão. eu é que sou o ruim,
o homem doente, o pior! Eu sou o pior e Alzira é que é boa porque me engana.
Alzira é pura porque me engana, Alzira é santa porque adultera. Tem nada não!
Tem nada não! Eu vou embora daqui curar a minha moléstia no hospital. (CHORA).
Eu vou embora para não incomodar vocês.
ÁUREA –
Ninguem se incomoda contigo, meu filho, é da tua esposa e a tua mãe.
LUIZ –
Que esposa, minha mãe? Eu nunca tive esposa! Essa palavra arde no meu coração
como o toque de um ferro em brasa! Ah, eu reconheço a extensão da minha grande
ventura! Essa mulher sempre foi o obstáculo da minha felicidade.
AUREA –
Repara, meu filho, como ela está chorando! Ela não disse ainda uma palavra que
te ofendesse!
LUIZ –
De falsa que é! Mas eu hei-de vingar-me de tudo. Armou-se de um punhal para
cortar-me a vida, é uma assassina! (PARA ALZIRA) – Deixa estar, Alzira! Deixa
estar que tu vais ficar descansada, livre e solta, formosa e liberta para a
impudência daquele cara por quem tu vives a suspirar! Olhas, escuta: escuta
sempre a tua consciência!
ÁUREA –
Meu filho, Alzira morre de desgosto!
LUIZ –
Que desgosto que nada! Morrer neste século, uma mulher de desgosto porque o
amante saiu ofendido? Eu tenho a inteligência precisa para compreender o
caráter das circunstancias e ouçam bem: mais tarde que eu encontrar nesta casa
aquele bandido que hoje encontrei, mato-o, mato-o, juro que serei assassino!
CENA 9
AUREA –
Não chore, minha filha. Aquilo tudo é o nervoso. Com paciência se vence tudo.
ALZIRA –
Mas será possível, dona Aurea, Luiz naquelas condições, desconfiando de mim,
querendo esbordoar-me injustamente?
AUREA –
Sossegue. O doutor Fernando me revelou que ele está sofrendo de um incomodo
grave no coração.
ALZIRA –
Não. Não pode continuar assim. A honra é o único tesouro da mulher verdadeiramente
honesta e eu me sinto profundamente magoada, o seu filho foi grosseiro, foi
rude, selvagem...
AUREA –
Não, minha filha, perdoa...
ALZIRA –
Não sei o que vai ser da minha vida. Não sei. A minha situação é a mais
dolorosa do mundo. As injurias que ele me atirou, as infâmias que me atribuiu,
eternamente hão-de ferir-me a alma, eu que sempre fui a mulher sincera que a
senhora tem conhecido.
AUREA –
Já te não fiz ciente do estado de saúde dele? Hem? Tem paciência.
ALZIRA –
Não há mulher no mundo mais resignada, mais paciente que eu. Sim. De que valeu
por toda a minha vida tanta fidelidade, tanta dedicação a ele? Ah, eu só tenho
agora dois caminhos a seguir, e me perdoe a loucura que nestes dias praticar.
AUREA –
Como? Pretendes praticar uma loucura?
ALZIRA –
Sim, eu lhe juro. Vou envenenar-me! Porque sei que nesta vida não haverá mais
felicidade para mim.
AUREA
(LEVANTANDO-SE) – Que está dizendo, Alzira? Estás louca|?
ALZIRA –
Não. Estou com todo o meu juízo, mas estou resolvida a tudo (CHORA).
AUREA –
Venha cá, minha filha. Você precisará sempre dos meus conselhos. Esqueça tudo
isso. Eu tenho uma novidade para você saber e que muito encherá de
contentamento. Mas escute. Escute. Levante a cabeça, escuro o que vou dizer:
sabe? Edmundo não morreu. Não morreu!
ALZIRA –
Como? Seu Edmundo não morreu?
AUREA –
Está aqui uma carta dele para o doutor Fernando.
ALZIRA
(LENDO) – Oh! Quanto isto me alegra! Só esse homem poderá salvar a minha vida,
que felicidade! Parece um sonho essa noticia!
AUREA –
Não sei como me sinto feliz, pois Deus atendeu as minha suplicas, louvado seja
Deus.
CENA 10
EDMUNDO
(ALEGRE) – Aurea! Alzira!
ALZIRA –
Meu Deus, Seu Edmundo!
AUREA –
Edmundo!
EDMUNDO
(SENTANDO-SE) – O homem morre no dia. Passei pela morte, minha gente, mas Deus
foi por mim!
AUREA –
A sua chegada é um sonho para mim. Deus atendeu meus prantos, as minhas
torturas.
ALZIRA –
Parece um sonho, seu Edmundo, aqui.
EDMUNDO
– O que eu sofri, sabe-o Deus. Não há nada pior que ver um navio naufragar. É
uma coisa tão alarmante que não se pode dizer.
ÁUREA –
Deve ser horrível mesmo.
ALZIRA –
Eu avalio.
EDMUNDO
– O doutor Fernando falou aqui a meu respeito?
AUREA –
Hoje falei com ele que me disse da sua chegada.
EDMUNDO
– Aquele doutor Fernando é interessante. Venho aqui da casa dele. Quase me
acabava de rir com ele.
ALZIRA –
Ele não falou a respeito do Luiz?
EDMUNDO
– Falou seriamente. Está gravemente doente. Mas poderá ficar restabelecido.
Onde está ele?
ALZIRA –
Na rua.
AUREA –
Está muito atacado dos nervos. Se você visse. Precisamos cuidar dele. Saiu hoje
daqui intrigado com Alzira.
EDMUNDO
– Paciência. É devido à moléstia. Vocês sabem o que é ver naufragar um navio?
ALZIRA –
Deve ser horrível.
EDMUNDO
– Eu nunca mais viajo a bordo. Quem de uma escapa cem anos vive. (RISADAS).
Seguro de que morreu? De velho. Eu doravante não quero mais nem ver um peixe
(RISADAS).
AUREA –
Só você agora faria a gente rir.
EDMUNDO –
Pois não é assim? Seguro morreu de velho e eu cá não nasci pra tubarões!
(RISADAS) Deus me livre! Só a terra entregarei a minha carcaça e tão cedo estou
bom pra isso. (RISADAS). Serei forte que a vantagem de tudo está em ser forte e
muito! (RISADAS) E gato escaldado tem medo de água fria. (RISADAS)
Cena 11
LUIZ (DA
PORTA LOBRIGANDO O VISITANTE PELAS COSTAS VIBRA UMA PUNHALADA. PROCURA CRAVAR
ALZIRA COM OS OLHOS FITOS NELA) – Miserável!
AUREA –
Luiz! (CAI SEM SENTIDOS)
ALZIRA –
Luiz! Pelo amor de Deus, não me mate (CONSEGUE FUGIR)
CENA 12
ALZIRA
(VOLTA A CENA PERSEGUIDA POR LUIZ) – Luiz, não seja desumano!
LUIZ
(PEREGUINDO-A COM O PUNHAL) – Perjura! Miserável!
ALZIRA –
Valha-me Nossa Senhora (FOGE)
LUIZ – (DETONA
O REVOLVER E SÓ DEPOIS RECONHECENDO O PAI, ENLOUQUECE, ENCOLERIZA, GARGALHA,
MORRE CONVULSIVAMENTE)
FIM
ELUCIDÁRIO
DO DRAMA – O químico Luiz Moreira, em regressando da Bahia acompanhado de
Edmundo Moreira, seu pai, conseguiu escapar de tremendo naufrágio do Princesa
Mafalda. Aquela noite sinistra do naufrágio, porém impressionou profundamente o
seu dinamismo psíquico e eis que uma cruel enfermidade se manifesta,
localizando-se de preferência nos centros psico-sensoriais. As suas funções
conscientes, o mecanismo lógico do pensamento, tudo nele passa por uma
incessante metamorfose em consequência das lesões das vias associativas
infra-cerebrais, quando começa a assimilar a ideia mórbida de que a sua esposa
lhe é infiel. A tragédia foi e será sempre o motivo dos grandes dramas da vida
humana. Sem ela não há dramatismo. Luiz, o paranoico, há de ser perpetuamente
um homem atual: anômalo, frenético, nevrotico. Dele falaram Stendhal, Albrecht,
Lombroso, Liszt, Garofalo, Ferri, etc. Mantegazza vulgarizou-o, Troillo o
identificou e Vicenzo Mellusi escreveu um livro ao seu respeito. E ele ali está
no noticiário dos jornais, nos cadastros criminais de volumosos processos
psíquicos mórbidos, nos registros de observações clinico-psicopatológicas, por
toda parte onde paira o homem impulsivo, cada dia mais imperfeito, segundo a
asserção apocalíptica. O teatro deverá ser uma escola de ética sublime, perene
e venerável casuística; e não essa encenação de equivoca moralidade que o
intelectualismo lamecha, alvorado de moderno, tenta cultivar criminosamente
perante o santuário da família. É preciso agir, urge combater, esse teatro
desastrado e licencioso que se inocula como um germe daninho no organismo
social, e este seria, dos centenares de problemas, um dos que mais deveriam
interessar aos governos, sabido que uma representação cênica é, como disse
Alexandre Herculado, um livro impresso em tantos exemplares quantos são os
espectadores. A alta finalística do teatro não é absolutamente fazer rir, como
supõem os espíritos anêmicos engranzados no pulhismo, porém contribuir para o
aperfeiçoamento da sociedade, tornando-se assim um poderoso instrumento de
civilização. O homem não é um títere social, um “gueux” ridículo. Ele é um ser
superior e meditativo, avido de glória, sequioso de progresso, aspirante à
perfeição suprema.
Outras
peças teatrais do autor: A envelope lacrada, Os dois irmãos, Maldição, As
lágrimas do perdão, O anjo do perdão, O dedo da fatalidade, As duas noivas, O
ladrão, A vingança do índio, Coração de pai, O homem da viola, Gabriel o
tísico, Amargura, Por cauda de Bonedicta e Adoração.
FENELON BARRETO – O
professor, advogado, teatrólogo e poeta, Fenelon do Nascimento Barreto
(1898-1961), nasceu em Amaraji, vindo para Palmares ainda criança. Colaborou
com jornais e revistas editadas, tornando-se editor das revistas Palmares e
Palmira, e do jornal do Clube Literário; foi professor de Língua Portuguesa e
Literatura no Colégio Nossa Senhora de Lourdes e em outros educandários.
Exerceu a função de Promotor Adjunto da Comarca de Palmares e foi Secretário de
Administração na gestão do prefeito João Buarque, deixando uma extensa obra que
se conserva sob a guarda da família. Entre as suas peças estão Gabriel, o
tísico, Maldição, A noiva, Os dois irmãos, O náufrago da Mafalda, entre outras.
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