terça-feira, janeiro 30, 2024

ARTE SUPERA TIMIDEZ

 

 

ARTE SUPERA TIMIDEZ

A arte como formação e criatividade na superação da timidez.

 

Ementa: O curso contempla a importância da atividade artística embasada em procedimentos psicológicos e neurocientíficos, no processo de formação e desenvolvimento do adolescente. Por meio da utilização de recursos técnicos e artísticos propõe a realização de atividades teórico-práticas, dinâmicas e vivências que promovam efetivamente a criatividade motivadora e a superação da timidez entre os alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio da rede pública e privada palmarense, para que estes, por meio de fundamentações teóricas e exercícios práticos possam desenvolver com autonomia e diligência atuações artísticas e superação da timidez.

 

Público-alvo: estudantes do Ensino Fundamental (do 5º ao 9º) e do Ensino Médio.

 

Duração: 10 meses, aulas semanais na Biblioteca Pública Fenelon Barreto – Palmares - PE.

 

Inscrições gratuitas e vagas limitadas.

 

Promoção: Amigos da Biblioteca, Zineblog Tataritaritatá & Biblioteca Fenelon Barreto.

 Inscreva-se aqui.



domingo, janeiro 23, 2022

O NÁUFRAGO DO MAFALDA, DE FENELON BARRETO

 

 

O NÁUFRAGO DO MAFALDA

Ou Precipitação

Ou Luiz, o paranoico.

 


Texto de Fenelon Barreto em 2 atos, encenado no dia 7 de setembro de 1930, em Palmares – PE. Drama da atualidade em dois atos breves, cada cena uma situação, levado à representação com concurso de rapazes e distintas senhorinhas do meio social.

 


PERSONAGENS - ELENCO

 

Luiz, 23 anos – Odyllo Ferreira

Alzira, 17 anos (esposa de Luiz) – Elmazia S. Couto

D. Áurea, 42 anos (mãe de Luiz) – Maria do Carmo

Amelia, 19 anos – Maria Francisca

Dr. Fernando, 37 anos, médico – José de Castro

Adolpho, 24 anos (um quidam) – Manoel Ferreira

Edmundo, 45 anos – Arthur Almeida.

 

PRIMEIRO ATO

 

CENA I

 

Alzira, esposa de Luiz, e d. Áurea, estão sentadas. A última, esposa de Edmundo, ouve a leitura do romance que Alzira lê embevecida. De súbito, um copo que estava a mesinha cai ao solo.

 

ÁUREA (com espanto) – Estás vendo, Alzira? Não sei o que está para acontecer!

ALZIRA (sobressaltada) – É verdade, d. Áurea. Já ontem me impressionou tanto a luz do candeeiro ter se apagado de repente! Não se lembra?

ÁUREA (levantando-se) – Não só isso. Hoje quando me levantei, uma borboleta preta veio pousar em meu vestido. Penso que nestes dias, nesta casa, acontecerá qualquer coisa.

ALZIRA (tomada) – Deus nos livre! Luiz e seu Edmundo viajando a bordo! Deus nos livre!

ÁUREA – Já uma vez começaram a aparecer estes avisos e sabe que sucedeu? Morreu subitamente a minha irmã no abalroamento do trem da Paraiba e eu quase me ia também com uma febre de mau caráter.

ALZIRA – Deus nos livre! Não consigo ficar sem me alarmar com o marido nessa viagem parece demorada.

(ALGUÉM BATE A PORTA, CARTEIRO COM TELEGRAMA. AMBAS SE LEVANTAM ASSUSTADAS, ASSINAM A RECEPÇÃO, ÁVIDAS PARA SABER O CONTEÚDO. ALZIRA LÊ O CONTEÚDO: NAUFRÁGIO NO PRINCESA MAFALDA!).

ÁUREA – Como? No Princesa Mafalda, aquele paquete italiano, não é? Ah! É um dos melhores transatlânticos. O que é que diz aí?

ALZIRA – Apenas o naufrágio.

ÁUREA – Quem enviou?

ALZIRA – Ah, não, não entendeu?

ÁUREA – O quê?

ALZIRA – Tenho muito medo. Esses avisos. Será que aconteceu alguma coisa com eles?

ÁUREA – Eles quem, mulher?

ALZIRA – A senhora está broca?

ÁUREA – Por quê?

ALZIRA – Onde estão seu marido e filho?

ÁUREA – Minha nossa, valha-me. (SENTA-SE DESOLADA, COM FALTA DE AR. ALZIRA TENTA SOCORRER COM UM COPO DE ÁGUA E AÇUCAR).

 

CENA 2

 

(OUVE-SE A CHEGADA DO JORNALEIRO GRITANDO: JORNAL! ALZIRA CORRE PARA PEGAR. ABRE-O ÀS PRESSAS E LER A MANCHETE E FICA TRANSTORNADA).

 

ALZIRA (num desespero súbito) – D. Áurea, que desgraça, d. Áurea! O Mafalda soçobrou! Ontem à noite! Luiz. E seu Edmundo?

ÁUREA – Como?... Como foi, Alzira?... Mostre (lê o jornal). Meu Deus! Que infelicidade! O meu esposo e o meu filho!

ALZIRA (desalentada) – Jesús! Que há de ser de mim! Tende piedade de mim, meu Deus!

 

CENA 4

(ENTRA FERNANDO)

 

FERNANDO – Bom dia! Que é isso aqui? Alguma novidade?

ALZIRA (soluçante) – Ai, dr. Fernando! Já sabe o que aconteceu? O Princesa Mafalda naufragou! Luiz e seu Edmundo vinham nesse paquete!

ÁUREA (soerguendo-se) – Tudo me acontece, dr. Fernando. Até isso! Meu filho e meu esposo morreram!

FERNANDO (pegando um papel no bolso) – Deixem disso, todos os passageiros foram salvos! E agora mesmo recebi um telegrama de Luiz dizendo que estava em paz.

ALZIRA – Ai, dr. Fernando, o senhor não poderia mostrar-me esse telegrama?

ÁUREA – É verdade isso, doutor?

ALZIRA – Ó, doutor, mostre esse telegrama. Nós aqui temos estão tão aflitas que o senhor não imagina.

FERMNANDO – O telegrama está em casa. O Luiz me comunicou que chega amanhã. Por isso que estou aqui para avisá-las e sossegá-las.

ALZIRA - Dr. Fernando, não deixe a gente ficar aqui tão sozinhas sem saber de nada. Se souber alguma mais venha dizer, por favor!

FERNANDO – Terei o maior prazer de vir aqui trazer qualquer notícia.

ÁUREA – Esse choque veio acabar comigo.

FERNANDO – Mas estejam sossegadas. Estejam tranquilas que nada aconteceu. Vou à rua e se aparecer qualquer novidade estarei aqui para contar pra vocês. Dêem-me licença. (SAI).

 

CENA 5

(ALZITA SENTADA COM ÁUREA)

 

ALZIRA – No dia de hoje morreu meu pai. Foi um dia angustioso para mim! Só me passa pela cabeça a ausência de Luiz, se algo acontecer a ele, será a maior desgraça do mundo.

ÁUREA – Por isso que eu nunca quis viajar de navio. Deus me defenda! Veja aí se chegou alguma embarcação de socorro.

ALZIRA (Consultando o jornal) – É esperado hoje o Rossetti. Pode ser que esse vapor nos traga alguma notícia, ou mesmo que eles venham nesse navio.

ÁUREA – Pode ser. Pode ser. Mas vá me diz o coração que eles estão mortos. Meu Deus! E quanta gente está nessa mesma aflição, hem?

 

CENA 6

(ALGUM TEMPO DEPOIS)

 

LUIZ (com aspecto clemente) – Alzira! Minha mãe!

(ALZIRA E ÁUREA RADIANTES) – Luiz! Luiz! (LUIZ CHORA ENTRE AS MULHERES)

ÁUREA – Luiz, meu filho, que é de Edmundo? Morreu?

LUIZ (soluçando) – Não chore, minha mãe, sim pai morreu... (ALZIRA E ÁUREA CHOROSAS) Vocês não chorem! Não chorem!

ÁUREA – Meu querido Edmundo, coitado!

LUIZ – É o espetáculo mais pungente da vida, assisti a tudo ontem! Ah, que desgraça! Os meus olhos viram, que horror! Afogamos e cantávamos com os companheiros! Tudo estava alegre naquele momento, quando se anunciou que a hélice do navio se partira! Não sei como foi! Só sei dizer que horas depois, ninguém esperava mais, as águas invadiram assustadoramente o interior do navio, tarde demais para o recurso de salvação! Alzira, minha filha, que horror naquele momento! Que quadro horrível, que deplorável! Por toda parte gritos, lamurias, gemidos, desespero! Por toda parte arrancos de peitos compungidos, quantos perderam a esperança, era a morte gargalhando sinistra naquele instante entre suas vítimas pregadas de surpresa! Era nossos destinos! Todos tínhamos que socorrer, aquela hora sinistra. A noite era horrenda! E quando o navio lembrava um asilo de alucinados, na confusão dos desgraçados eu e outros nos atiramos ao mar! Meu Deus! Que cena angustiosa aquela, pungente! Homens, mulheres, crianças, todos devorados pelos tubarões! E eu vi, mamãe, eu vi um tubarão devorar um homem que tenho a certeza de ter visto meu pai. (ÁUREA E ALZIRA SOLUÇAM). Alzira! Venha cá! Como tem vivido você? Quase dessa vez perdia o seu Luiz.

ÁUREA – Meu filho. Faz três dias que nós temos tido visões de morte aqui em casa. Realizou-se tudo. Perdi o meu Edmundo. Vou embora para onde está o meu irmão.

ALZIRA – A senhora não vá embora!

LUIZ – Mamãe, não deve ir embora pra casa de tio joca, nem de ninguém. Não deve ir, não. Ficará aqui mesmo com a gente. Mamãe! Eu ando muito doente da cabeça, pois tive um abalo terrível. Estou louco de ontem, a noite toda. O doutor Fernando não apareceu: o médico de bordo achou que eu devia repousar. Eu vou conversar com o doutor Fernando, Alzira, você trata do almoço que ainda hoje não comi nada.

ALZIRA (levantando-se) – Luiz, você demore pouco.

ÁUREA – Serei resignada. Chega de tudo, não perdi o meu filho. A minha dor tem esta resignação.

ALZIRA – Pobre de seu Edmundo. E Luiz? A senhora já notou como ele está diferente? Eu penso que Luiz está muito chocado.

ÁUREA – Não é para menos, Alzira. Eu vou tratar do almoço de Luiz que ele não tarda a chegar.

 

CENA 7

ADOLFO, UM AGENTE DA CAIXA FORTE – Dão licença?

ÁUREA – Pois não!

ADOLFO – A senhora não deseja inscrever-se na Caixa Forte?

ÁREA (Depois de muita insistência) – Que vantagens oferece a Caixa Forte?

ALZURA – D. Áurea, vamos tratar do almoço de Luiz.

ADOLFO – A Caixa Forte tem sorteios mensais. É muito bom ser sócio!

ÁUREA – Hoje mesmo, não.

ALZIRA – O senhor venha outra vez.

ADOLFO – Pois bem: nestes dias virei expor as vantagens da Caixa Forte! É muita honra para mim tê-las como sócias.

 

CENA 8

LUIZ (entrando e encontrando Adolfo na entrada que logo sai) – Alzira, quem é este homem?

ALZIRA – É um representante da Caixa Forte.

LUIZ – Pois... Pois então, não consinto que ele torne a entrar aqui.

ALZIRA – Está, porventura, desconfiando de mim?

LUIZ – Sei lá de nada! Me deixa, me deixa. Já cuidaste do meu almoço? Que fez então todo esse tempo? Hein? Prestando atenção àquele patife não foi? Hem, Alzira? Vamos, vai cuidar de meu almoço! (BATENDO FORTE NA MESA) Vai! Vai! Antes quye eu me dane! Tu sabes que eu vou morrer, estás preparando o terreno!

ALZIRA – Luiz, que estás dizendo?

LUIZ (furioso) – Cala-te, senão eu te esbandalho! Quantas vezes a mulher que nóps suponhamos um anjo não passa de uma aventureira?

 

PANO

 

SEGUNDO ATO

CENA 1

(SENTADOS LUIZ E O FERNANDO, O PRIMEIRO COM O PESCOÇO ENVOLVIDO, COM ASPECTO DE DOENTE)

 

LUIZ – Seja-me positivo, doutor. Os sintomas desta moléstia me parecem graves, penso que vou morrer. Ainda ontem senti as mesmas dores agudas no coração, o meu coração está cansado, sinto profunda ansiedade, cruéis sufocações, vivo inquieto, agitado! Tem momento que chego cair em desmaio. Tenho muitas vezes o rosto arroxeado e sinto contrações terríveis.

FERNANDO – Não se impressione com isso. Observe o regime e nada mais. Evite as fadigas e vá tomando aqueles remédios, que nesses dias estará restabelecido. Você não tem afecção alguma no coração. Não se esqueça de tomar muito leite que lhe fará um grande bem, ouviu? Deixe ver uma coisa: (AUSCULTAO-O. SENTE O RUIDO E FRANZE O SOBROLHO). É o que estou dizendo. Nada de gravidade. Vá seguinte os meus conselhos. (DESPEDE-SE E SAI).

 

CENA 2

ÁUREA – Então que disse o médico sobre teu incomodo?

LUIZ – O dr. Fernando está animado, só eu é que não estou. Disse que não há nada a recear. Pode ser. Mas eu ainda duvido. Deixou ai esses remédios.

ÁUREA (REVÊ OS REMÉDIOS) – é, meu filho, o doutor conhece o incomodo. O que você tem mais é uma grande alteração nervosa.

LUIZ – Pois não hei-de estar nervoso, mamãe? Se há poucos os motivos que eu tenho para estar nervoso?

ÁUREA – Mas por causa de que, menino? Devido ao dinheiro perdido no naufrágio? Ora. Vão-se os anéis, ficam os dedos.

LUIZ – Aquela desgraça me impressionou! A noite daquele sinistro nunca consegui esquecer. Nunca mais hei-de viajar no mar, Deus me livre! Como que ainda ouço o clamor daquele povo no desespero de perder as vidas! Toda noite sonho com aquele cruel espetáculo! O mar revolto, o paquete imergindo e o gemido das ondas!

ÁUREA – Esquece isso, vamos! nada dessas lembranças!

LUIZ – E o meu pai, mamãe? Ah! Eu vi o tubarão devorá-lo, eu vi como ele morreu num dado momento angustioso, coitado, antes fosse eu que tivesse morrido porque não estava sofrendo assim! Mamãe, me dê ai esse remédio.

ÁUREA (OBEDECE).

LUIZ – Estou com a ansiedade do peito. Penso que estou com uma inflamação muito grave no coração! Ah! Meu Deus: morrer tão moço! Quando penso em morrer! Sabe de uma coisa, mamãe? Eu vou receitar-me com outro médico, não muito no doutor Fernando (TIRA O CHAPÉU E VEXA-SE).

 

CENA3

 

(ÁUREA QUE VOLTOU DA PORTA, ESTÁ SENTADA, MEDITANDO DIANTE DE UM GAMÃO)

 

ALZIRA – Que é de Luiz?

ÁUREA – Foi a rua receitar-se.

ALZUIRA – E o doutor Fernando?

ÁUREA – Diz que o doutor Fernando não lhe inspira nenhuma confiança.

ALZIRA – Aquele incomode Luiz é deveras impressionante. Mas ele ficará restabelecido.

ÁUREA – Só tenho medo é que ele não enlouqueça. Não há dívida que ele está com uma lesão cardíaca.

 

CENA 4

CELESTE (MUITO EXPLICADA) – Bons dias.

ALZIRA & ÁUREA – Oh, Celeste!

ALZIRA – Está passeando?

CELESTE – Absolutamente. Como está o Luiz?

ALZIRA – Sempre doente, minha filha.

ÁUREA – Com aquele nervosismo dele. Não tem melhorado nada.

CELESTE – E o doutor Fernando Valladares diz o quê a respeito das manifestações sintomáticas?

ALZIRA – Ele diz que ele ficará restabelecido.

ÁUREA – Mas o que salva o doente é a fé. Ele não tem mais confiança no médico.

CELESTE – Vou agora à casa do médico fazer-lhe uma consulta.

ALZIRA – Sim, muito bem. Dona Áurea pode ir agora com Celeste com o doutor?

CELESTE – Ele mora nesta rua, não é?

ALZIRA – Aqui perto.

ÁUREA – Pois eu vou com Celeste. Com pouco mais estou de volta.

 

SAEM AS DUAS.

 

CENA 5

 

ADOLFO ENTRA COM SEU PECULIAR PEDANTISMO – Bom dia! Bom dia! Então está resolvido a inscrever-se na Caixa Forte?

ALZIRA (LEVANTANDO-=SE SOBRESSALTADA) – Não senhor. Tenho um grande horropr a toda espécie de jogo.

ADOLFO – Mas compreenda a senhora que isto não é jogo, é antes um divertimento.

ALZIRA – Não senhor. Não gosto de divertimento. E peço ao senhor a fineza de não vir aqui oferecer-me mais isso.

ADOLFO – Minha senhora!...

ALZIRA – Sou uma senhora casada e o meu marido é bastante zeloso por mim. Não quero saber de jogo.

ADOLFO – Oh, minha gentil senhora, isso é não conhecer o que é o vantajoso!... Poios aqui mesmo nesta rua tem um cavalheiro, o senhor Vicente, ora, ele foi premiado com 4 milhões!...

 

CENA 6

 

LUIZ (POSSESSO) – O que é isso aqui? O senhor deseja alguma coisa, hem, seu atrevido? Porque o senhor ainda entra nessa casa, hem? Que explicação me dá sobre o seu atrevimento, sobre a sua afoiteza?

ADOLFO – Afoiteza, como? Eu sou propagandista da Caixa Forte!

LUIZ – Por aqui, cachorro! Por aqui senão neste mesmo instante eu faço a minha desgraça e eu não quero perder a cabeça contigo (EMPURRA-O) rua, rua rua!...

ADOLFO SAI.

 

CENA 7

 

LUIZ – E a senhora, hem? E a senhora? Porventura não se recorda mais do que lhe disse, hem? Que procedimento miserável é o seu:

ALZIRA – Luiz! Luiz! Acalme!

LUIZ – Cale-se! Acalmar, como? Eu devia agora mesmo quebra-la de murros e tabefes, cortar-lhe o cabelo atirá-la à rua como um cão... por que, por que... porque a senhora só merece que se lhe faça isso!...  (ROSNANDO) Miserável! Miserável! Onde é que eu estou? Onde é que eu estou?

ALZIRA – Luiz, pelo amor de Deus, não sacrifique a minha felicidade.

LUIZ – Cale-se, já disse! Cale-se!... Eu sei sobejamente com quem convivo! Eu conheço os dedos das minhas mãos.

ALZIRA (RESOLUTA) – Prove que algum dia na minha vida eu cometesse uma falta. Você prova... tem que provar! Se não provar...

LUIZ – Bandida!... Com que arrojo a senhora ousa replicar as minhas acusações? Quem é a senhora e quem foi a senhora no passado?

ALZIRA – Fui sempre uma moça honesta, fui, sempre fui, podem arrancar-me a vida mas nunca escurecer esta verdade, nem afastar-me este orgulho!

LUIZ – Sempre foste, uma infame! Uma infame! Nunca foste mais do que uma infame!

ALZIRA – Luiz, ainda lhe imploro compaixão! Tem pena de mim, Luiz!...

LUIZ – A sua saída é chamar dengosamente pelo meu nome, com essa falinha maneirosa, com esses modinhos falsos que tenho repugnância. Sim, muita repugnância, muito asco, muito nojo!... Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse conter agora o meu grande desejo de vomitar!... E a sociedade lá fora a mangar de mim! A sociedade! Deixa estar! Deixa estar que talvez hoje mesmo o diabo se solte, o diabo tem sete cornos e sete muchochos, sabes? Cuida da tua vida, macaquinha! Onde está a minha mãe?... É sempre assim! Quando ela sai, a senhora aproveita a oportunidade para os seus requebros com aquele safadinho, nbão sabendo que mais tarde ou mais cedo, isso irá custar caro, caro, muito caro, porque eu estou fazendo tudo para entrar numa precipitação!...

ALZIRA – O senhor é deveras injusto comigo, eu nunca o injuriei para ser tão injuriada, seja mais justo, retire as palavres que me disse.

LUIZ – O quê? Então eu sou injusto? Então eu é que não presto? Não é? Hem, macaquinha? (QUER PEGÁ-LA). Espere aí!...

ALZIRA - (TIRANDO UM PUNHAL NA GAVETA) Mato-o, miserável! E depois me matarei! A vida para mim já não vale nada! As injurias que o senhor me atirou são nodoas vivas que nunca se apagarão!

LUIZ (IMÓVEL) – Criminosa! Queres me matar, não é?

ALZURA – Sou pura como nenhuma! E se o senhor espancar-me eu o matarei! Experimente!

 

CENA 8

 

ÁUREA – Que é isso? Vocês estão brigando?

LUIZ – Essa mulher quer me matar, minha mãe!

AUREA – Mas por que? Que é isso? Por que isso?

ALZIRA COMEÇA A CHORAR.

ÁUREA – Que é isso, minha gente? Que coisa mais feia!

LUIZ – Eu sou um homem, minha mãe! Essa mulher não vale nada e a senhora também tem culpa porque deixa que ela fique sozinha uando sabe que ela vive noite e dia premeditando o adultério!

ÁUREA – Meu filho, não diga isso de Alzira que é uma pobre criatura!

LUIZ – Que nada, minha mãe! A senhora também vem defende-la, a essa mulher sem sentimento, sem dignidade alguma?

AUREA – Eu conheço Alzira e tu também a conheces. Coitadinha. Ela te ama, meu filho. Ela tem sofrido tanto por tua causa. Tu estás doente!

LUIZ – É isso mesmo!... Tem razão! A senhora e ela tem toda razão. eu é que sou o ruim, o homem doente, o pior! Eu sou o pior e Alzira é que é boa porque me engana. Alzira é pura porque me engana, Alzira é santa porque adultera. Tem nada não! Tem nada não! Eu vou embora daqui curar a minha moléstia no hospital. (CHORA). Eu vou embora para não incomodar vocês.

ÁUREA – Ninguem se incomoda contigo, meu filho, é da tua esposa e a tua mãe.

LUIZ – Que esposa, minha mãe? Eu nunca tive esposa! Essa palavra arde no meu coração como o toque de um ferro em brasa! Ah, eu reconheço a extensão da minha grande ventura! Essa mulher sempre foi o obstáculo da minha felicidade.

AUREA – Repara, meu filho, como ela está chorando! Ela não disse ainda uma palavra que te ofendesse!

LUIZ – De falsa que é! Mas eu hei-de vingar-me de tudo. Armou-se de um punhal para cortar-me a vida, é uma assassina! (PARA ALZIRA) – Deixa estar, Alzira! Deixa estar que tu vais ficar descansada, livre e solta, formosa e liberta para a impudência daquele cara por quem tu vives a suspirar! Olhas, escuta: escuta sempre a tua consciência!

ÁUREA – Meu filho, Alzira morre de desgosto!

LUIZ – Que desgosto que nada! Morrer neste século, uma mulher de desgosto porque o amante saiu ofendido? Eu tenho a inteligência precisa para compreender o caráter das circunstancias e ouçam bem: mais tarde que eu encontrar nesta casa aquele bandido que hoje encontrei, mato-o, mato-o, juro que serei assassino!

 

CENA 9

 

AUREA – Não chore, minha filha. Aquilo tudo é o nervoso. Com paciência se vence tudo.

ALZIRA – Mas será possível, dona Aurea, Luiz naquelas condições, desconfiando de mim, querendo esbordoar-me injustamente?

AUREA – Sossegue. O doutor Fernando me revelou que ele está sofrendo de um incomodo grave no coração.

ALZIRA – Não. Não pode continuar assim. A honra é o único tesouro da mulher verdadeiramente honesta e eu me sinto profundamente magoada, o seu filho foi grosseiro, foi rude, selvagem...

AUREA – Não, minha filha, perdoa...

ALZIRA – Não sei o que vai ser da minha vida. Não sei. A minha situação é a mais dolorosa do mundo. As injurias que ele me atirou, as infâmias que me atribuiu, eternamente hão-de ferir-me a alma, eu que sempre fui a mulher sincera que a senhora tem conhecido.

AUREA – Já te não fiz ciente do estado de saúde dele? Hem? Tem paciência.

ALZIRA – Não há mulher no mundo mais resignada, mais paciente que eu. Sim. De que valeu por toda a minha vida tanta fidelidade, tanta dedicação a ele? Ah, eu só tenho agora dois caminhos a seguir, e me perdoe a loucura que nestes dias praticar.

AUREA – Como? Pretendes praticar uma loucura?

ALZIRA – Sim, eu lhe juro. Vou envenenar-me! Porque sei que nesta vida não haverá mais felicidade para mim.

AUREA (LEVANTANDO-SE) – Que está dizendo, Alzira? Estás louca|?

ALZIRA – Não. Estou com todo o meu juízo, mas estou resolvida a tudo (CHORA).

AUREA – Venha cá, minha filha. Você precisará sempre dos meus conselhos. Esqueça tudo isso. Eu tenho uma novidade para você saber e que muito encherá de contentamento. Mas escute. Escute. Levante a cabeça, escuro o que vou dizer: sabe? Edmundo não morreu. Não morreu!

ALZIRA – Como? Seu Edmundo não morreu?

AUREA – Está aqui uma carta dele para o doutor Fernando.

ALZIRA (LENDO) – Oh! Quanto isto me alegra! Só esse homem poderá salvar a minha vida, que felicidade! Parece um sonho essa noticia!

AUREA – Não sei como me sinto feliz, pois Deus atendeu as minha suplicas, louvado seja Deus.

 

CENA 10

 

EDMUNDO (ALEGRE) – Aurea! Alzira!

ALZIRA – Meu Deus, Seu Edmundo!

AUREA – Edmundo!

EDMUNDO (SENTANDO-SE) – O homem morre no dia. Passei pela morte, minha gente, mas Deus foi por mim!

AUREA – A sua chegada é um sonho para mim. Deus atendeu meus prantos, as minhas torturas.

ALZIRA – Parece um sonho, seu Edmundo, aqui.

EDMUNDO – O que eu sofri, sabe-o Deus. Não há nada pior que ver um navio naufragar. É uma coisa tão alarmante que não se pode dizer.

ÁUREA – Deve ser horrível mesmo.

ALZIRA – Eu avalio.

EDMUNDO – O doutor Fernando falou aqui a meu respeito?

AUREA – Hoje falei com ele que me disse da sua chegada.

EDMUNDO – Aquele doutor Fernando é interessante. Venho aqui da casa dele. Quase me acabava de rir com ele.

ALZIRA – Ele não falou a respeito do Luiz?

EDMUNDO – Falou seriamente. Está gravemente doente. Mas poderá ficar restabelecido. Onde está ele?

ALZIRA – Na rua.

AUREA – Está muito atacado dos nervos. Se você visse. Precisamos cuidar dele. Saiu hoje daqui intrigado com Alzira.

EDMUNDO – Paciência. É devido à moléstia. Vocês sabem o que é ver naufragar um navio?

ALZIRA – Deve ser horrível.

EDMUNDO – Eu nunca mais viajo a bordo. Quem de uma escapa cem anos vive. (RISADAS). Seguro de que morreu? De velho. Eu doravante não quero mais nem ver um peixe (RISADAS).

AUREA – Só você agora faria a gente rir.

EDMUNDO – Pois não é assim? Seguro morreu de velho e eu cá não nasci pra tubarões! (RISADAS) Deus me livre! Só a terra entregarei a minha carcaça e tão cedo estou bom pra isso. (RISADAS). Serei forte que a vantagem de tudo está em ser forte e muito! (RISADAS) E gato escaldado tem medo de água fria. (RISADAS)

 

Cena 11

 

LUIZ (DA PORTA LOBRIGANDO O VISITANTE PELAS COSTAS VIBRA UMA PUNHALADA. PROCURA CRAVAR ALZIRA COM OS OLHOS FITOS NELA) – Miserável!

AUREA – Luiz! (CAI SEM SENTIDOS)

ALZIRA – Luiz! Pelo amor de Deus, não me mate (CONSEGUE FUGIR)

 

CENA 12

ALZIRA (VOLTA A CENA PERSEGUIDA POR LUIZ) – Luiz, não seja desumano!

LUIZ (PEREGUINDO-A COM O PUNHAL) – Perjura! Miserável!

ALZIRA – Valha-me Nossa Senhora (FOGE)

LUIZ – (DETONA O REVOLVER E SÓ DEPOIS RECONHECENDO O PAI, ENLOUQUECE, ENCOLERIZA, GARGALHA, MORRE CONVULSIVAMENTE)

 

FIM

 

ELUCIDÁRIO DO DRAMA – O químico Luiz Moreira, em regressando da Bahia acompanhado de Edmundo Moreira, seu pai, conseguiu escapar de tremendo naufrágio do Princesa Mafalda. Aquela noite sinistra do naufrágio, porém impressionou profundamente o seu dinamismo psíquico e eis que uma cruel enfermidade se manifesta, localizando-se de preferência nos centros psico-sensoriais. As suas funções conscientes, o mecanismo lógico do pensamento, tudo nele passa por uma incessante metamorfose em consequência das lesões das vias associativas infra-cerebrais, quando começa a assimilar a ideia mórbida de que a sua esposa lhe é infiel. A tragédia foi e será sempre o motivo dos grandes dramas da vida humana. Sem ela não há dramatismo. Luiz, o paranoico, há de ser perpetuamente um homem atual: anômalo, frenético, nevrotico. Dele falaram Stendhal, Albrecht, Lombroso, Liszt, Garofalo, Ferri, etc. Mantegazza vulgarizou-o, Troillo o identificou e Vicenzo Mellusi escreveu um livro ao seu respeito. E ele ali está no noticiário dos jornais, nos cadastros criminais de volumosos processos psíquicos mórbidos, nos registros de observações clinico-psicopatológicas, por toda parte onde paira o homem impulsivo, cada dia mais imperfeito, segundo a asserção apocalíptica. O teatro deverá ser uma escola de ética sublime, perene e venerável casuística; e não essa encenação de equivoca moralidade que o intelectualismo lamecha, alvorado de moderno, tenta cultivar criminosamente perante o santuário da família. É preciso agir, urge combater, esse teatro desastrado e licencioso que se inocula como um germe daninho no organismo social, e este seria, dos centenares de problemas, um dos que mais deveriam interessar aos governos, sabido que uma representação cênica é, como disse Alexandre Herculado, um livro impresso em tantos exemplares quantos são os espectadores. A alta finalística do teatro não é absolutamente fazer rir, como supõem os espíritos anêmicos engranzados no pulhismo, porém contribuir para o aperfeiçoamento da sociedade, tornando-se assim um poderoso instrumento de civilização. O homem não é um títere social, um “gueux” ridículo. Ele é um ser superior e meditativo, avido de glória, sequioso de progresso, aspirante à perfeição suprema.

Outras peças teatrais do autor: A envelope lacrada, Os dois irmãos, Maldição, As lágrimas do perdão, O anjo do perdão, O dedo da fatalidade, As duas noivas, O ladrão, A vingança do índio, Coração de pai, O homem da viola, Gabriel o tísico, Amargura, Por cauda de Bonedicta e Adoração.

 


FENELON BARRETO – O professor, advogado, teatrólogo e poeta, Fenelon do Nascimento Barreto (1898-1961), nasceu em Amaraji, vindo para Palmares ainda criança. Colaborou com jornais e revistas editadas, tornando-se editor das revistas Palmares e Palmira, e do jornal do Clube Literário; foi professor de Língua Portuguesa e Literatura no Colégio Nossa Senhora de Lourdes e em outros educandários. Exerceu a função de Promotor Adjunto da Comarca de Palmares e foi Secretário de Administração na gestão do prefeito João Buarque, deixando uma extensa obra que se conserva sob a guarda da família. Entre as suas peças estão Gabriel, o tísico, Maldição, A noiva, Os dois irmãos, O náufrago da Mafalda, entre outras. Veja mais Fenelon Barreto aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

 


sábado, maio 15, 2021

SOMBRAS DO CORAÇÃO – ROTEIRO CURTA-METRAGEM

 

 

SOMBRAS DO CORAÇÃO

ROTEIRO, DIREÇÃO & MÚSICA: LUIZ ALBERTO MACHADO

 

ABERTURA. MÚSICA. TÍTULO.

CRÉDITOS INICIAIS.

 

CENA 1

 

A porta fechada do apartamento. Ouve-se o barulho da chave na fechadura, a porta se abre de repente. Entra Gilvanícila que acende a luz, tranca a porta, se encaminha para a mesa onde deposita a bolsa, chaves, mantimentos numa sacola de supermercado. Ela está cansada de um dia estafante, retira o casaco, senta-se. Descalça a sandália, desabotoa a calça comprida, esbaforida, pega os mantimentos e vai guardar no compartimento, alimentos na geladeira, remove lacres e os joga na lixeira. Ela se abana, suspira, remexe a bolsa, retira o telefone celular, confere deslizando o dedo no aparelho, deposita-o sobre a mesa. Remexe novamente a bolsa, retira agenda e outros utensílios. Está ofegante. Segue até o banheiro, porta entreaberta, ouve-se o barulho da água do chuveiro. O telefone toca, mas ela não ouve. Solfeja uma música ao banho enquanto estridula o telefone insistentemente.

 

SOBE O BG. BLACK-OUT. OUVE-SE APENAS O TRINADO DO TELEFONE INSISTENTEMENTE.

 

CENA 2

 

Ouve-se a suspensão do barulho do chuveiro e o larilará de Gilvanícila.

 

GILVANÍCILA

 

Já vou! Eita, telefone para não me dar sossego... Já vou!

 

ABRE-SE A PORTA DO BANHEIRO, SAI GILVANÍCILA VESTIDA COM UMA BLUSA GRANDE DE ALÇAS, TOALHA ENXUGANDO O CABELO, ATENDE DESAJEITADA O TELEFONE.

 

GILVANÍLA (atendendo o telefone)

 

Alô!... Diz mulher... estava no banho. Como é? (TRANSTORNADA) Quando foi isso? (SENTA-SE, ELA ESTÁ FEIÇÕES GRAVES). Desde quando?... Sim... Diz isso não, mulher... (IMPACIENTE, ELA SE LEVANTA E FICA OUVINDO O TELEFONE ANDANDO DE UM LADO A OUTRO). Onde ela está?... sim... onde?... Onde é que fica?... Vou agora mesmo praí... Como não?... Diz isso não, mulher... (ELA COMOVIDA, COMEÇA A CHORAR) Por que?... Diz isso não... Faz isso comigo não... Faz isso não... Como é que pode?... (ELA ENTRA EM DESESPERO). Diz isso não... E como é que ela está?... Não é possível que ela tenha dito isso... Não pode ser, faz isso comigo não... (ELA SENTA-SE E COMEÇA A FALAR CHORANDO, QUASE NÃO SE DÁ PARA ENTENDER SEUS LAMENTOS E O DESABAFO. LEVANTA-SE OUVINDO O QUE A VOZ DIZ DO OUTRO LADO DO TELEFONE. RONRONA, CHORA. CAMINHA DE UM LADO A OUTRO, INCONSOLÁVEL, OUVINDO DETALHADAMENTE. SENTA-SE NOVAMENTE, CHORANDO, MÃO À CABEÇA). Quer dizer que ela não quer que eu vá praí... Faz isso comigo não... Por que?... Tá, vai me diz, por que ela não quer me ver nem quer que eu vá praí, diz... (ELA MAIS SE DESESPERA). Não pode ser... Vou me arrumar e vou praí agorinha, queira ou não... Por que ela não quer me ver, diga?... Por que?... (ELA SE DIRIJE PRO QUARTO, DEITA-SE NA CAMA, AOS PRANTOS, OUVINDO O RELATO DA VOZ QUE FALA AO TELEFONE). Diz isso não... Tá. E os médicos disseram o quê?... (ELA SE AGARRA AO TRAVESSEIRO, ESCONDE A CABEÇA OUVINDO AO TELEFONE).

 

SOBE O BG. BLACKOUT.

 

CENA 3

 

(GILVANÍCILA ABRE OS OLHOS, ESTÁ DEITADA AO TRAVESSEIRO, OLHOS INCHADOS DE CHORAR. LEVANTA-SE LENTAMENTE, SENTA-SE AO LADO DA CAMA, PENSATIVA).

 

GILVANÍCILA

 

Por que ela não quer me ver? Não pode ser... Só me faltava essa...

 

(ELA LEVANTA-SE RESMUNGANDO, FALANDO SOZINHA, PEGA UM COPO, VAI ATÉ A GELADEIRA, RETIRA GELO, COLOCA NO COPO, PEGA UMA GARRAFA DE UÍSQUE, COLOCA UMA DOSE, BEBE, ACENDE UM CIGARRO E, COM A FUMAÇA DA BAFORADA, DESABAFA SOZINHA).

 

GILVANÍCILA

 

Ela nunca gostou mesmo de mim. Sempre notei isso, mas me negar de vê-la hospitalizada, deixar claro que não quer a minha presença ali, a sua idade, pode ser a última vez, a minha oportunidade de vê-la e saber dela por que ela nunca gostou de mim, por que sempre me tratou com desprezo, sempre botou gosto ruim nas minhas coisas e vida, me encaminhou logo cedo pros meus avós, nunca quis cuidar de mim, eu cresci e vivi minha vida toda longe dela, nunca quis saber de mim, nunca gostou do que fiz ou faço, sempre me condenou, sempre disse não para mim, nunca um afeto, um carinho, não sei o que é carinho de mãe, por que, por que, por que? Por que, mãe?

 

(SENTA-SE À MESA, COLOCA AS MÃOS À CABEÇA, RESMUNGANDO. PEGA UM COPO, DIRIGE O OLHAR PERDIDO PARA ALGUM LUGAR E RUMINA ENQUANTO BEBE, ACENDE UM CIGARRO, NERVOSA).

 

GILVANÍCILA

 

Preciso descobrir. Pensa, mulher! (BEBE, TRAGA E BAFORA O CIGARRO. O TELEFONE TOCA, ATENDE DESAJEITADA). Ôi, mulher, como ela está?... Imagino... Eu vou praí... Por que não?... Não faz isso comigo, eu preciso da minha mãe, preciso estar perto dela, preciso sentir pela primeira ela perto de mim, não lembro quando ela me afagou e a afaguei, nunca tive carinho de mãe, preciso saber dela por que ela nunca gostou de mim... Eu sei que ela não gostava de mim e morria de ciúmes do meu pai comigo, eu sei... Se não era ciúmes do meu pai comigo, ele era tão carinhoso, tão atento a tudo que eu fazia, só pode ser isso... Tá, se não era ciúmes do meu pai comigo, o que era então?... Ah, você é amiga dela, conviveu com ela todo o tempo do mundo que eu nunca pude viver, ela nunca quis estar comigo, me jogou na casa dos meus avós e me abandonou para sempre... Eu sentia que ela não gostava de mim e toda vez que eu a visitava ela era indiferente, fria, distante, nunca se aproximou de mim, nunca me deu um beijo, nunca procurou por mim, bastava eu chegar e ela já dizia que era hora de ir e eu queria tanto conversar com ela, saber dela, ouvi-la contar da sua vida, dividir com ela a minha vida... Por que não?... Então você sabe a verdadeira razão... Faz isso comigo não, vai, me conta, preciso saber por que minha mãe nunca gostou de mim... Ela me odiava, parece... mas por que? Ah, tá... me liga, por favor... não me deixa aqui aflita sem saber de nada, senão eu vou praí!... Tá bom, me deixa a par, por favor, só você pode saber da minha aflição, não me abandona, me deixa a par de tudo... Tá bom, aguardo sua ligação com os resultados...

 

SOBE O BG. GILVANÍLIA BEBE, ACENDE OUTRO CIGARRO, ESTÁ NERVOSA. LEVANTA-SE FALANDO SOZINHA, VAI DE UM LADO A OUTRA DA SALA, ESTÁ INQUIETA.

 

GILVANÍLA

 

Nunca tive amor de mãe, não sei o que é isso. Meu pai, enquanto viveu, supria essa falta, sempre carinhoso, sempre atencioso, meu pai não existia, era coisa de outro mundo. Ele se foi faz tanto tempo, mas ainda o sinto aqui, ao meu lado... ah, meu pai, que falta você me faz! Esteve sempre ao meu lado, comigo o tempo inteiro, não me deixava perdida, tão vulnerável, como eu preciso do abraço dele agora... Meus avós, coitados, sempre me deram apoio, vovó foi uma mãe exemplar, substituiu a minha mãe à altura, não posso reclamar. Mas, poxa, carinho de mãe é importante e ela viva todo esse tempo me rejeitando, por quê? Por que será, meu Deus, que minha mãe não quer me ver nem pintada a ouro, nunca quis, nem mesmo agora em que ela está nesse momento de difícil, entre a vida e a morte. Não quer me ver, não quer que eu vá pro hospital, não quer sequer saber de mim, por que será, meu Deus?... (O TELEFONE TOCA, ELA ATENDE). Sim, vai, me dá notícias dela... Sim... Faz isso comigo não, vai... E os médicos disseram o quê?... Eu vou praí... eu preciso, mulher, preciso estar perto da minha mãe... faz isso comigo não... Tá bom, ficarei aqui aguardando as notícias, me deixa a par, por favor... eu só queria saber porque ela me odeia tanto... Eu sei que não é hora para isso, mas são tantas perguntas, nenhuma resposta, você mesma que conviveu com ela esse tempo todo conhece ela melhor que eu... sim, eu sei da amizade desde meninas entre vocês, mas eu também tenho o direito de saber a verdade, não acha?... Veja a minha situação: meu pai que era meu único porto seguro se foi há muito tempo; meus avós, coitados, sempre atenciosos, não tenho do que reclamar, meu amor foi outro muito bom comigo, vovó foi à toda prova, não tenho do que reclamar, você acha que procurar saber porque a mãe odeia uma filha não é uma razão suficiente para que ela tenha sofrimentos que precisam ser questionados para que compreenda porque em toda a sua vida foi tratada com desprezo?... Tá bom, eu sei que este não é o momento certo, precisamos mesmo torcer pelas melhoras dela, mas você mesma me disse que a situação dela é grave e que os médicos disseram tratar-se de um quadro irreversível... tenho medo de nunca mais poder ver minha mãe e esclarecer tudo... Tá certo, eu espero... ficarei aqui, mesmo sob protestos, mesmo revoltada com tudo isso, estarei aqui, me deixa a par, por favor... tá bom...

 

SOBE O BG. ELA DESLIGA O APARELHO E O COLOCA SOBRE A MESA. ESTÁ PENSATIVA. ENCHE O COPO DE BEBIDA, APAGA O CIGARRO, ACENDE OUTRO. BAFORA, LEVANTA-SE, AJEITANDO AS BITUCAS NO CINZEIRO. FALA SOZINHA. SAI, JOGA AS CINZAS DO CINZEIRO NA LIXEIRA, VOLTA PRA MESA, SENTA-SE.

 

GILVANÍCILA

 

Meu pai é a melhor lembrança da minha vida. Ele sempre realizou todos os meus sonhos, sorridente, não lembro nunca de ver meu pai triste, mesmo no velório ele morreu com um sorriso nos lábios. Com todo mundo era sorridente, acolhedor, até com traste do meu... Peraí... Basta eu me lembrar daquele tio, chega me dá uma coisa ruim... eu gostava tanto dele, mas o que ele fez foi imperdoável... sofri muitos anos por causa dele, ainda hoje sofro quando me lembro... foram preciso décadas de pesadelos... por que eu me lembrei desse traste agora? Não quero me lembrar, já tinha esquecido aquela ruindade... ah, não... (LEVANTA-SE INQUIETA, VAI DE UM LADO A OUTRO)... Eu era tão jovem, ele não podia ter feito aquilo comigo, é passado, já foi. Por causa dele, meu pai morreu de infarto. Dois crimes que ele cometeu e desgraçou tudo: o que me fez na minha inocência adolescente, razão pela qual meu pai foi tragado por fulminante morte. Desgraçado!... Não posso perdoá-lo... o que ele me fez não fui curada, mas o ato dele matou meu pai e isso é imperdoável... como eu queria agora me vingar dele, vê-lo face a face para cuspir-lhe a cara e dizer tudo que tenho de raiva guardada contra ele... Parece mais que o ódio da minha mãe tem a ver com a raiva que tenho daquele desgraçado... por que ela nunca me apoiou contra ele? Aliás, ela nunca me apoiou em nada, não seria por isso que passaria a me apoiar. O único ato de apoio dela foi enxotá-lo lá de casa depois da morte do meu pai. Afora isso, não lembro de nenhum sorriso, nenhum afeto, nada dela para minha banda, sempre olhares de soslaio, muxoxos de desprezo, só queria me ver pelas costas... ah, não... (PEGA O COPO, BEBE MAIS UM POUCO, APAGA O CIGARRO, ACENDE OUTRO, BAFORA E PENSA CONSIGO, FALANDO SOZINHA). Peraí, aquela pasta com a papelada de papai que ela me deu... onde está? Preciso acha-la agora... (SAI REMEXENDO E PROCURANDO PELA CASA). Onde eu guardei, meu Deus, preciso dela agorinha, pode ter que tenha alguma pista... Não está... Onde guardei?... Ah, tá aqui... (PEGA A PASTA EMPOEIRADA E COLOCA SOBRE A MESA, ABRE-A E PASSA A PAPELADA). Ah, os cadernos com a caligrafia do meu pai e seus poeminhas para mim... só dei atenção a isso, preciso ver o resto da papelada (PASSANDO DOCUMENTO A DOCUMENTO, UMA FOLHA CAI AO CHÃO). O que é isso?... Documento de exame médico de meu pai... como é? Não pode ser... Meu pai era estéril? E de quem eu sou filha afinal... não pode ser... Se ele não era o meu pai biológico, quem seria?... Não pode ser, ah, meu Deus, diga que não, por favor... (PEGA O TELEFONE, LIGA). Atende, desgraçada! (DIGITA NOVAMENTE). Atende, por favor, atende! (DEIXA O TELEFONE PARA LÁ E REMEXE NA PAPELADA). Minha certidão de nascimento... a certidão de casamento dos meus pais... a certidão de óbito do meu pai... (REPASSA TODOS OS DOCUMENTOS E PAPELADA). Não pode ser, tomara que eu esteja enganada... (PEGA O TELEFONE NOVAMENTE, DISCA E NÃO ATENDE). Droga! Por que ela não me atende?... Ela sabe, sabe de tudo... Precisa me esclarecer... (O TELEFONE TOCA). Graças! Ôi, mulher, liguei que só pra você e não atendeu... sim, como ela está? Diz isso não... Ainda bem, mas continuam dizendo que é irreversível?... Meu Deus, o que será de mim... Tá, estou calma, me controlando, aqui esperando as suas notícias. Tomara ela saia dessa, preciso que ela saia dessa, tenho muito que conversar com ela... Descobri umas coisas agora, ah, não, não desligue, peraí, quero perguntar uma coisa... peraí, deixa eu perguntar uma coisa: descobri agora que meu pai era estéril, então você sabe quem é o meu pai de verdade? Não desligue... Eu sei que não é hora para essas coisas, mas eu tenho o direito de saber!... Então, me diga só uma coisa, só uma coisinha: eu não sou filha do traste do meu tio, né?... Por que você não pode responder, é só dizer sim ou não... Pelo menos para me apaziguar... Faz isso comigo, não. Responde vai... Eu fico aqui esperando as noticias da minha mãe, não saio daqui, mas me responde: eu não sou filha daquele que me estuprou não, né?

 

SOBE O BG. GILVANÍCILA JOGA O TELEFONE, PÕE A CABEÇA SOBRE AS MÃOS, O MUNDO GIRA. BLACKOUT.

 

CENA 4

 

BG MATINAL. JÁ É DIA NA JANELA DO QUARTO. GILVANÍCILA DORME ENROLADA NO COBERTOR, CAMA DESARRUMADA COM LIVROS, ANOTAÇÕES, UTENSÍLIOS. ELA SE ACORDA ASSUSTADA COM O TOQUE DO CELULAR.

 

GILVANÍCILA (ATENDENDO TELEFONE ASSUSTADA)

 

Sim, como ela está? (LEVANTA-SE E SE DIRIGE PARA A SALA. A MESA DESARRUMADA, PAPÉIS, O LITRO DO UÍSQUE DEITADO VAZIO, O CINZEIRO ESBORRANDO DE BITUCAS. SENTA-SE À MESA CHOROSA, CABEÇA APOIADA NA MÃO ENQUANTO OUVE A FALA NO APARELHO, DESOLADA). Sim... sim... vá direto ao assunto, como ela está depois de passar essa noite toda... os médicos disseram o quê?... sim, não enrole, os médicos disseram o quê?... sim... e tem jeito?... Como ela está agora?... Aonde?... Faz isso comigo não... (CHORANDO). Coitado dos meus avós, agora tenho que cuidar dos vivos... Eles estão muito velhinhos, tenho que dar a notícia a eles, não sei como vai ser... Tá bom... acordei agora, vou tomar um banho... posso ir praí agora?... Eu tinha muito que conversar com ela, mas agora é tarde... pelo menos poderei estar perto dela no velório, pelo menos isso... Eu já sei de tudo, não quero mais saber de culpados nem de inocentes, nem vítimas, nem carrascos... quero viver a minha vida e cuidar dos meus avós que logo logo chegará a hora deles... preciso desfrutar do que ainda me resta da minha família... Obrigado, chego já por aí. Tchausis.

 

SOBE O BG. GILVANÍCILA DEITA A CABEÇA SOBRE A MESA, AO DESALENTO.

CREDITOS FINAIS.

FIM.

 

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