sábado, maio 15, 2021

SOMBRAS DO CORAÇÃO – ROTEIRO CURTA-METRAGEM

 

 

SOMBRAS DO CORAÇÃO

ROTEIRO, DIREÇÃO & MÚSICA: LUIZ ALBERTO MACHADO

 

ABERTURA. MÚSICA. TÍTULO.

CRÉDITOS INICIAIS.

 

CENA 1

 

A porta fechada do apartamento. Ouve-se o barulho da chave na fechadura, a porta se abre de repente. Entra Gilvanícila que acende a luz, tranca a porta, se encaminha para a mesa onde deposita a bolsa, chaves, mantimentos numa sacola de supermercado. Ela está cansada de um dia estafante, retira o casaco, senta-se. Descalça a sandália, desabotoa a calça comprida, esbaforida, pega os mantimentos e vai guardar no compartimento, alimentos na geladeira, remove lacres e os joga na lixeira. Ela se abana, suspira, remexe a bolsa, retira o telefone celular, confere deslizando o dedo no aparelho, deposita-o sobre a mesa. Remexe novamente a bolsa, retira agenda e outros utensílios. Está ofegante. Segue até o banheiro, porta entreaberta, ouve-se o barulho da água do chuveiro. O telefone toca, mas ela não ouve. Solfeja uma música ao banho enquanto estridula o telefone insistentemente.

 

SOBE O BG. BLACK-OUT. OUVE-SE APENAS O TRINADO DO TELEFONE INSISTENTEMENTE.

 

CENA 2

 

Ouve-se a suspensão do barulho do chuveiro e o larilará de Gilvanícila.

 

GILVANÍCILA

 

Já vou! Eita, telefone para não me dar sossego... Já vou!

 

ABRE-SE A PORTA DO BANHEIRO, SAI GILVANÍCILA VESTIDA COM UMA BLUSA GRANDE DE ALÇAS, TOALHA ENXUGANDO O CABELO, ATENDE DESAJEITADA O TELEFONE.

 

GILVANÍLA (atendendo o telefone)

 

Alô!... Diz mulher... estava no banho. Como é? (TRANSTORNADA) Quando foi isso? (SENTA-SE, ELA ESTÁ FEIÇÕES GRAVES). Desde quando?... Sim... Diz isso não, mulher... (IMPACIENTE, ELA SE LEVANTA E FICA OUVINDO O TELEFONE ANDANDO DE UM LADO A OUTRO). Onde ela está?... sim... onde?... Onde é que fica?... Vou agora mesmo praí... Como não?... Diz isso não, mulher... (ELA COMOVIDA, COMEÇA A CHORAR) Por que?... Diz isso não... Faz isso comigo não... Faz isso não... Como é que pode?... (ELA ENTRA EM DESESPERO). Diz isso não... E como é que ela está?... Não é possível que ela tenha dito isso... Não pode ser, faz isso comigo não... (ELA SENTA-SE E COMEÇA A FALAR CHORANDO, QUASE NÃO SE DÁ PARA ENTENDER SEUS LAMENTOS E O DESABAFO. LEVANTA-SE OUVINDO O QUE A VOZ DIZ DO OUTRO LADO DO TELEFONE. RONRONA, CHORA. CAMINHA DE UM LADO A OUTRO, INCONSOLÁVEL, OUVINDO DETALHADAMENTE. SENTA-SE NOVAMENTE, CHORANDO, MÃO À CABEÇA). Quer dizer que ela não quer que eu vá praí... Faz isso comigo não... Por que?... Tá, vai me diz, por que ela não quer me ver nem quer que eu vá praí, diz... (ELA MAIS SE DESESPERA). Não pode ser... Vou me arrumar e vou praí agorinha, queira ou não... Por que ela não quer me ver, diga?... Por que?... (ELA SE DIRIJE PRO QUARTO, DEITA-SE NA CAMA, AOS PRANTOS, OUVINDO O RELATO DA VOZ QUE FALA AO TELEFONE). Diz isso não... Tá. E os médicos disseram o quê?... (ELA SE AGARRA AO TRAVESSEIRO, ESCONDE A CABEÇA OUVINDO AO TELEFONE).

 

SOBE O BG. BLACKOUT.

 

CENA 3

 

(GILVANÍCILA ABRE OS OLHOS, ESTÁ DEITADA AO TRAVESSEIRO, OLHOS INCHADOS DE CHORAR. LEVANTA-SE LENTAMENTE, SENTA-SE AO LADO DA CAMA, PENSATIVA).

 

GILVANÍCILA

 

Por que ela não quer me ver? Não pode ser... Só me faltava essa...

 

(ELA LEVANTA-SE RESMUNGANDO, FALANDO SOZINHA, PEGA UM COPO, VAI ATÉ A GELADEIRA, RETIRA GELO, COLOCA NO COPO, PEGA UMA GARRAFA DE UÍSQUE, COLOCA UMA DOSE, BEBE, ACENDE UM CIGARRO E, COM A FUMAÇA DA BAFORADA, DESABAFA SOZINHA).

 

GILVANÍCILA

 

Ela nunca gostou mesmo de mim. Sempre notei isso, mas me negar de vê-la hospitalizada, deixar claro que não quer a minha presença ali, a sua idade, pode ser a última vez, a minha oportunidade de vê-la e saber dela por que ela nunca gostou de mim, por que sempre me tratou com desprezo, sempre botou gosto ruim nas minhas coisas e vida, me encaminhou logo cedo pros meus avós, nunca quis cuidar de mim, eu cresci e vivi minha vida toda longe dela, nunca quis saber de mim, nunca gostou do que fiz ou faço, sempre me condenou, sempre disse não para mim, nunca um afeto, um carinho, não sei o que é carinho de mãe, por que, por que, por que? Por que, mãe?

 

(SENTA-SE À MESA, COLOCA AS MÃOS À CABEÇA, RESMUNGANDO. PEGA UM COPO, DIRIGE O OLHAR PERDIDO PARA ALGUM LUGAR E RUMINA ENQUANTO BEBE, ACENDE UM CIGARRO, NERVOSA).

 

GILVANÍCILA

 

Preciso descobrir. Pensa, mulher! (BEBE, TRAGA E BAFORA O CIGARRO. O TELEFONE TOCA, ATENDE DESAJEITADA). Ôi, mulher, como ela está?... Imagino... Eu vou praí... Por que não?... Não faz isso comigo, eu preciso da minha mãe, preciso estar perto dela, preciso sentir pela primeira ela perto de mim, não lembro quando ela me afagou e a afaguei, nunca tive carinho de mãe, preciso saber dela por que ela nunca gostou de mim... Eu sei que ela não gostava de mim e morria de ciúmes do meu pai comigo, eu sei... Se não era ciúmes do meu pai comigo, ele era tão carinhoso, tão atento a tudo que eu fazia, só pode ser isso... Tá, se não era ciúmes do meu pai comigo, o que era então?... Ah, você é amiga dela, conviveu com ela todo o tempo do mundo que eu nunca pude viver, ela nunca quis estar comigo, me jogou na casa dos meus avós e me abandonou para sempre... Eu sentia que ela não gostava de mim e toda vez que eu a visitava ela era indiferente, fria, distante, nunca se aproximou de mim, nunca me deu um beijo, nunca procurou por mim, bastava eu chegar e ela já dizia que era hora de ir e eu queria tanto conversar com ela, saber dela, ouvi-la contar da sua vida, dividir com ela a minha vida... Por que não?... Então você sabe a verdadeira razão... Faz isso comigo não, vai, me conta, preciso saber por que minha mãe nunca gostou de mim... Ela me odiava, parece... mas por que? Ah, tá... me liga, por favor... não me deixa aqui aflita sem saber de nada, senão eu vou praí!... Tá bom, me deixa a par, por favor, só você pode saber da minha aflição, não me abandona, me deixa a par de tudo... Tá bom, aguardo sua ligação com os resultados...

 

SOBE O BG. GILVANÍLIA BEBE, ACENDE OUTRO CIGARRO, ESTÁ NERVOSA. LEVANTA-SE FALANDO SOZINHA, VAI DE UM LADO A OUTRA DA SALA, ESTÁ INQUIETA.

 

GILVANÍLA

 

Nunca tive amor de mãe, não sei o que é isso. Meu pai, enquanto viveu, supria essa falta, sempre carinhoso, sempre atencioso, meu pai não existia, era coisa de outro mundo. Ele se foi faz tanto tempo, mas ainda o sinto aqui, ao meu lado... ah, meu pai, que falta você me faz! Esteve sempre ao meu lado, comigo o tempo inteiro, não me deixava perdida, tão vulnerável, como eu preciso do abraço dele agora... Meus avós, coitados, sempre me deram apoio, vovó foi uma mãe exemplar, substituiu a minha mãe à altura, não posso reclamar. Mas, poxa, carinho de mãe é importante e ela viva todo esse tempo me rejeitando, por quê? Por que será, meu Deus, que minha mãe não quer me ver nem pintada a ouro, nunca quis, nem mesmo agora em que ela está nesse momento de difícil, entre a vida e a morte. Não quer me ver, não quer que eu vá pro hospital, não quer sequer saber de mim, por que será, meu Deus?... (O TELEFONE TOCA, ELA ATENDE). Sim, vai, me dá notícias dela... Sim... Faz isso comigo não, vai... E os médicos disseram o quê?... Eu vou praí... eu preciso, mulher, preciso estar perto da minha mãe... faz isso comigo não... Tá bom, ficarei aqui aguardando as notícias, me deixa a par, por favor... eu só queria saber porque ela me odeia tanto... Eu sei que não é hora para isso, mas são tantas perguntas, nenhuma resposta, você mesma que conviveu com ela esse tempo todo conhece ela melhor que eu... sim, eu sei da amizade desde meninas entre vocês, mas eu também tenho o direito de saber a verdade, não acha?... Veja a minha situação: meu pai que era meu único porto seguro se foi há muito tempo; meus avós, coitados, sempre atenciosos, não tenho do que reclamar, meu amor foi outro muito bom comigo, vovó foi à toda prova, não tenho do que reclamar, você acha que procurar saber porque a mãe odeia uma filha não é uma razão suficiente para que ela tenha sofrimentos que precisam ser questionados para que compreenda porque em toda a sua vida foi tratada com desprezo?... Tá bom, eu sei que este não é o momento certo, precisamos mesmo torcer pelas melhoras dela, mas você mesma me disse que a situação dela é grave e que os médicos disseram tratar-se de um quadro irreversível... tenho medo de nunca mais poder ver minha mãe e esclarecer tudo... Tá certo, eu espero... ficarei aqui, mesmo sob protestos, mesmo revoltada com tudo isso, estarei aqui, me deixa a par, por favor... tá bom...

 

SOBE O BG. ELA DESLIGA O APARELHO E O COLOCA SOBRE A MESA. ESTÁ PENSATIVA. ENCHE O COPO DE BEBIDA, APAGA O CIGARRO, ACENDE OUTRO. BAFORA, LEVANTA-SE, AJEITANDO AS BITUCAS NO CINZEIRO. FALA SOZINHA. SAI, JOGA AS CINZAS DO CINZEIRO NA LIXEIRA, VOLTA PRA MESA, SENTA-SE.

 

GILVANÍCILA

 

Meu pai é a melhor lembrança da minha vida. Ele sempre realizou todos os meus sonhos, sorridente, não lembro nunca de ver meu pai triste, mesmo no velório ele morreu com um sorriso nos lábios. Com todo mundo era sorridente, acolhedor, até com traste do meu... Peraí... Basta eu me lembrar daquele tio, chega me dá uma coisa ruim... eu gostava tanto dele, mas o que ele fez foi imperdoável... sofri muitos anos por causa dele, ainda hoje sofro quando me lembro... foram preciso décadas de pesadelos... por que eu me lembrei desse traste agora? Não quero me lembrar, já tinha esquecido aquela ruindade... ah, não... (LEVANTA-SE INQUIETA, VAI DE UM LADO A OUTRO)... Eu era tão jovem, ele não podia ter feito aquilo comigo, é passado, já foi. Por causa dele, meu pai morreu de infarto. Dois crimes que ele cometeu e desgraçou tudo: o que me fez na minha inocência adolescente, razão pela qual meu pai foi tragado por fulminante morte. Desgraçado!... Não posso perdoá-lo... o que ele me fez não fui curada, mas o ato dele matou meu pai e isso é imperdoável... como eu queria agora me vingar dele, vê-lo face a face para cuspir-lhe a cara e dizer tudo que tenho de raiva guardada contra ele... Parece mais que o ódio da minha mãe tem a ver com a raiva que tenho daquele desgraçado... por que ela nunca me apoiou contra ele? Aliás, ela nunca me apoiou em nada, não seria por isso que passaria a me apoiar. O único ato de apoio dela foi enxotá-lo lá de casa depois da morte do meu pai. Afora isso, não lembro de nenhum sorriso, nenhum afeto, nada dela para minha banda, sempre olhares de soslaio, muxoxos de desprezo, só queria me ver pelas costas... ah, não... (PEGA O COPO, BEBE MAIS UM POUCO, APAGA O CIGARRO, ACENDE OUTRO, BAFORA E PENSA CONSIGO, FALANDO SOZINHA). Peraí, aquela pasta com a papelada de papai que ela me deu... onde está? Preciso acha-la agora... (SAI REMEXENDO E PROCURANDO PELA CASA). Onde eu guardei, meu Deus, preciso dela agorinha, pode ter que tenha alguma pista... Não está... Onde guardei?... Ah, tá aqui... (PEGA A PASTA EMPOEIRADA E COLOCA SOBRE A MESA, ABRE-A E PASSA A PAPELADA). Ah, os cadernos com a caligrafia do meu pai e seus poeminhas para mim... só dei atenção a isso, preciso ver o resto da papelada (PASSANDO DOCUMENTO A DOCUMENTO, UMA FOLHA CAI AO CHÃO). O que é isso?... Documento de exame médico de meu pai... como é? Não pode ser... Meu pai era estéril? E de quem eu sou filha afinal... não pode ser... Se ele não era o meu pai biológico, quem seria?... Não pode ser, ah, meu Deus, diga que não, por favor... (PEGA O TELEFONE, LIGA). Atende, desgraçada! (DIGITA NOVAMENTE). Atende, por favor, atende! (DEIXA O TELEFONE PARA LÁ E REMEXE NA PAPELADA). Minha certidão de nascimento... a certidão de casamento dos meus pais... a certidão de óbito do meu pai... (REPASSA TODOS OS DOCUMENTOS E PAPELADA). Não pode ser, tomara que eu esteja enganada... (PEGA O TELEFONE NOVAMENTE, DISCA E NÃO ATENDE). Droga! Por que ela não me atende?... Ela sabe, sabe de tudo... Precisa me esclarecer... (O TELEFONE TOCA). Graças! Ôi, mulher, liguei que só pra você e não atendeu... sim, como ela está? Diz isso não... Ainda bem, mas continuam dizendo que é irreversível?... Meu Deus, o que será de mim... Tá, estou calma, me controlando, aqui esperando as suas notícias. Tomara ela saia dessa, preciso que ela saia dessa, tenho muito que conversar com ela... Descobri umas coisas agora, ah, não, não desligue, peraí, quero perguntar uma coisa... peraí, deixa eu perguntar uma coisa: descobri agora que meu pai era estéril, então você sabe quem é o meu pai de verdade? Não desligue... Eu sei que não é hora para essas coisas, mas eu tenho o direito de saber!... Então, me diga só uma coisa, só uma coisinha: eu não sou filha do traste do meu tio, né?... Por que você não pode responder, é só dizer sim ou não... Pelo menos para me apaziguar... Faz isso comigo, não. Responde vai... Eu fico aqui esperando as noticias da minha mãe, não saio daqui, mas me responde: eu não sou filha daquele que me estuprou não, né?

 

SOBE O BG. GILVANÍCILA JOGA O TELEFONE, PÕE A CABEÇA SOBRE AS MÃOS, O MUNDO GIRA. BLACKOUT.

 

CENA 4

 

BG MATINAL. JÁ É DIA NA JANELA DO QUARTO. GILVANÍCILA DORME ENROLADA NO COBERTOR, CAMA DESARRUMADA COM LIVROS, ANOTAÇÕES, UTENSÍLIOS. ELA SE ACORDA ASSUSTADA COM O TOQUE DO CELULAR.

 

GILVANÍCILA (ATENDENDO TELEFONE ASSUSTADA)

 

Sim, como ela está? (LEVANTA-SE E SE DIRIGE PARA A SALA. A MESA DESARRUMADA, PAPÉIS, O LITRO DO UÍSQUE DEITADO VAZIO, O CINZEIRO ESBORRANDO DE BITUCAS. SENTA-SE À MESA CHOROSA, CABEÇA APOIADA NA MÃO ENQUANTO OUVE A FALA NO APARELHO, DESOLADA). Sim... sim... vá direto ao assunto, como ela está depois de passar essa noite toda... os médicos disseram o quê?... sim, não enrole, os médicos disseram o quê?... sim... e tem jeito?... Como ela está agora?... Aonde?... Faz isso comigo não... (CHORANDO). Coitado dos meus avós, agora tenho que cuidar dos vivos... Eles estão muito velhinhos, tenho que dar a notícia a eles, não sei como vai ser... Tá bom... acordei agora, vou tomar um banho... posso ir praí agora?... Eu tinha muito que conversar com ela, mas agora é tarde... pelo menos poderei estar perto dela no velório, pelo menos isso... Eu já sei de tudo, não quero mais saber de culpados nem de inocentes, nem vítimas, nem carrascos... quero viver a minha vida e cuidar dos meus avós que logo logo chegará a hora deles... preciso desfrutar do que ainda me resta da minha família... Obrigado, chego já por aí. Tchausis.

 

SOBE O BG. GILVANÍCILA DEITA A CABEÇA SOBRE A MESA, AO DESALENTO.

CREDITOS FINAIS.

FIM.

 

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